Tereza Aparecida Asta Gemignani DESEMBARGADORA DO TRT 15
Daniel Gemignani PROCURADOR DO TRABALHO
“…os deveres de proteção têm natureza de princípio; eles exigem uma proteção a mais ampla possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.”
Robert Alexy
“A dignidade é indivisível.”
Ronald Dworkin
Ao promover a reforma trabalhista, a Lei 13.467/17 fez modificações significativas no ordenamento jurídico laboral, as quais vêm provocando diversas controvérsias, especialmente quando se trata de interpretar a extensão do art. 611-A da clt, que prevê a prevalência da convenção coletiva e do acordo coletivo de trabalho “sobre a lei”.
Entre as discussões decorrentes da interpretação do referido dispositivo legal, toma corpo a que se refere à possibilidade de negociação coletiva sobre critérios para a caracterização de pessoas com deficiência e reabilitados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (inss), assim como a base de cálculo do sistema de cotas, sob o argumento de que o art. 611-A da clt teria elencado apenas um rol exemplificativo.
Este artigo se propõe a analisar a matéria, tendo como norte os direitos fundamentais das pessoas com deficiência e, em especial, as razões que impedem a negociação coletiva sobre aspectos essenciais da política de inclusão das pessoas com deficiência[1], assim como as medidas voltadas à adoção de postura inclusiva por parte dos empregadores.
1. A IMPOSSIBILIDADE DE NEGOCIAR COLETIVAMENTE ASPECTOS ESSENCIAIS DA POLÍTICA DE INCLUSÃO EFETIVA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
1.1. A caracterização da deficiência
A Constituição Federal prescreve como fundamentos do estado democrático de direito a cidadania, a dignidade da pessoa e os valores sociais do trabalho em correlação com a livre iniciativa (art. 1º, ii a iv), fixando a redução das desigualdades sociais e o combate a todas as formas de discriminação como objetivos da república brasileira (art. 3º, iii e iv). Lastreado nessa matriz principiológica, o inc. xxxi do art. 7º da Constituição Federal vedou expressamente “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.
Na seara internacional, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes[2] (onu, 1975) chamou a atenção para a importância da proteção. Neste ensaio são também invocadas as normas da Organização Internacional do Trabalho (oit), em especial a Convenção 159, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 51/89, e promulgada por meio do Decreto 129/91[3], assim como a Recomendação 168, que vieram assegurar às pessoas com deficiência o direito de não sofrer discriminação, abrindo caminhos para a inclusão.
A União Europeia seguiu essa senda em seus atos normativos, tendo a Diretiva 2.000/78 estabelecido expressamente a igualdade no que se refere ao trabalho, o combate à discriminação por idade, sexo, religião e deficiência em questões que envolvam formação e educação profissional, assim como o acesso, manutenção e proteção ao emprego[4].
Pelo Decreto Legislativo 186/08, o Brasil aprovou, com quórum qualificado, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (cdpd), assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, conferindo-lhe status de emenda constitucional, nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. A referida convenção foi promulgada pelo Decreto 6.949/09.
Dentre suas disposições, releva-se a contida no art. 4º, item 4, que fixa, de forma clara, a necessária progressividade dos direitos sociais:
Artigo 4
Obrigações gerais
1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:
[…]
4. Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.
Essa disposição vem ao encontro da determinação disposta no art. 19, item 8, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (oit), bem como do contido no item 2, alínea “d”, de sua Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho:
Artigo 19
[…]
8. Em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação.
2. Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: […] d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
Vê-se, assim, existir em nosso ordenamento jurídico amplo estuário normativo a sustentar a adequada proteção das pessoas com deficiência, não havendo, portanto, questionamentos com relação a essa orientação.
Dúvidas, contudo, começam a surgir quando passamos a analisar como deve ser identificada a pessoa com deficiência e como deve se dar sua proteção. No que se refere à caracterização de pessoa com deficiência, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (cdpd) estabelece:
Artigo 1º
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Explica Ricardo Tadeu Marques da Fonseca[5] que o direito ao trabalho das pessoas com deficiência está disciplinado no art. 27 da aludida convenção, o qual assegura que
a liberdade de escolha de trabalho, adaptação física e atitudinal dos locais de trabalho, formação profissional, justo salário em condição de igualdade com qualquer outro cidadão, condições seguras e saudáveis de trabalho, sindicalização, garantia de livre iniciativa no trabalho autônomo, empresarial ou cooperativado, ações afirmativas de promoção de acesso ao emprego privado ou público, garantia de progressão profissional e preservação do emprego, habilitação e reabilitação profissional.
Com efeito, as normas postas pela referida convenção internacional, que integram, como emenda constitucional, a Constituição Federal, abriram nova perspectiva ao considerar que as supostas limitações da pessoa com deficiência devem, na verdade, ser avaliadas em interação com o meio ambiente em que atua, superando, assim, o entendimento anterior de que a deficiência seria um fator pessoal, “portado” pela pessoa, e que, por isso, poderia conferir-lhe a qualificação de incapaz.
Assim, formatou a nova diretriz constitucional o conceito de que na pessoa com deficiência inexiste incapacidade ou limitação de per si, intrínseca, mas sim que a pessoa que sofre restrições à plenitude de sua vida, quando exposta às limitações de um meio ambiente hostil e inadaptado, tem dificultada sua interação social e seu acesso ao trabalho, necessários para garantir não só sua subsistência física, mas também sua atuação como cidadão.
Em um regime republicano, o exercício da cidadania está atrelado ao princípio da igualdade, o que implica assegurar ampla inclusão social da pessoa com deficiência, levando à superação do entendimento daqueles[6] que circunscreviam o princípio da igualdade apenas à segunda geração ou dimensão dos direitos humanos, para reconhecer que integra, na realidade, a espinha dorsal dos direitos fundamentais e, assim, permeia todas as dimensões dos direitos humanos.
Como bem pondera Dworkin[7], em uma “comunidade verdadeiramente democrática, cada cidadão é um parceiro em igualdade de condições, o que vai muito além de seu voto valer o mesmo que os outros. Significa que ele tem a mesma voz e igual interesse nos resultados”.
Nessa esteira, Cármen Lúcia Antunes Rocha[8] chama a atenção para a conotação conferida pela Constituição ao princípio da igualdade, ao asseverar que
deixou de ser diretriz exclusiva destinada ao legislador, deixou de ser limite negativo de atuação do poder público; antes tornou-se uma obrigação positiva do governante em face do indivíduo […] uma obrigação que vincula […] no sentido de igualar, por uma ficção jurídica, as condições de vida para que cada qual possa buscar o seu desenvolvimento pessoal em consonância com suas peculiaridades, a sua forma singular, única e distinta de ser.
Por isso, conforme pontua Robert Alexy[9], o modelo de solução deve levar “em consideração tanto a igualdade jurídica quanto a fática”, deixando espaço “para um amplo espectro de distintas concepções”.
Assim, sob o pressuposto da igualdade, ocorreu a necessária mudança na forma de caracterização da pessoa com deficiência encetada pela Convenção de Nova York, que ampara a substituição do denominado “critério médico”, que vislumbrava, de forma estática, a deficiência como uma limitação do indivíduo, pelo “critério biopsicossocial”, segundo o qual deve haver uma caracterização funcional da deficiência que se dá quando as limitações decorrem de barreiras ambientais.
Sob essa nova perspectiva tem-se respaldo às políticas públicas destinadas a garantir igualdade de oportunidades às pessoas com deficiência, por considerar que o respeito à dignidade delas e à sua igualdade implicam, e pressupõem, garantir seu direito à autonomia, ou seja, sem depender dos “favores” de outrem.
De outra banda, a existência de uma política pública inclusiva não se restringe apenas à pessoa com deficiência, uma vez que a verdadeira inclusão envolve a participação de todos aqueles que com ela interagem. Tal perspectiva – isto é, daqueles que vão interagir com as pessoas com deficiência – traz consigo a oportunidade de um convívio com as diferenças, próprio de uma sociedade plural.
Sob tal conceito foi o “critério biopsicossocial” incorporado pelo ordenamento infraconstitucional, passando a ser adotado pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15 – Estatuto da Pessoa com Deficiência), ao estabelecer:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
§1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinare considerará:
I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III – a limitação no desempenho de atividades; e
IV – a restrição de participação.
§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.
Essa lei de inclusão também alterou o Código Civil, ao excluir a pessoa com deficiência do rol constante do art. 3º, restringindo a incapacidade absoluta apenas aos menores de 16 anos, além de alterar o art. 1.767 do mesmo Código que, ao tratar da curatela, passou a reconhecer que a deficiência, por si só, não configura incapacidade e, portanto, não tira a autonomia da pessoa de dirigir sua própria vida.
Contudo, passados anos desde a sanção da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, não foi editado pelo Poder Executivo qualquer regramento específico para a avaliação da deficiência sob o critério biopsicossocial[10], em claro descumprimento ao disposto nos arts. 2º, § 2º, e 124[11] da referida lei. Assim, ainda remanescem em nosso ordenamento jurídico as disposições do Decreto 3.298/99, que não disciplina a caraterização da deficiência com base no critério biopsicossocial, mas sim por meio do critério médico, fixando disposições não só restritivas, mas também contrárias ao atual regime jurídico.
Exemplos dessa situação são as discussões envolvendo a caracterização de pessoas com visão monocular como deficientes, conforme se denota da Súmula 377 do Superior Tribunal de Justiça (stj), que dispõe: “O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes” (Súmula 377, Terceira seção, julgado em: 22.04.2009, DJe 05.05.2009).
A insegurança decorrente da existência concomitante de um regime jurídico que prescreve determinado critério para a caracterização da pessoa como deficiente (critério biopsicossocial) e de um decreto regulamentador que alvitra critério diverso (critério médico) não pode significar a possibilidade de que, pela via da negociação coletiva, se busque solução restritiva e mesmo discriminatória, pois nosso ordenamento jurídico determina, de forma clara e expressa, o dever de inclusão das pessoas com deficiência.
A caracterização da pessoa com deficiência é matéria alheia à autonomia da vontade coletiva, pois está pautada por ditames constitucionais e legais, traçados por uma tônica inclusiva. Portanto, diversamente da conclusão que admite, na esteira da euforia criada pelo art. 611-A da clt, a possibilidade de ampla negociação coletiva trabalhista, há que se recordar que existem no ordenamento jurídico laboral determinações que, conquanto se refiram à relação laboral, não se submetem à autonomia da vontade coletiva, uma vez que constituem verdadeira política de Estado.
1.2. A estipulação de cotas
Aspecto central na identificação de quão desenvolvida é uma sociedade está na maneira como ela reconhece a dignidade daqueles que integram grupos sociais mais vulneráveis, sob a perspectiva histórica, cultural, social e econômica. Tomando-se como base esse pressuposto é que vamos analisar o caso das pessoas com deficiência, que são desafiadas, diuturnamente, pelas limitações biopsicossociais que encontram no caminho.
Como ressalta Luiz Alberto David Araújo[12], neste caso, as limitações
formam um conjunto de dificuldades, que desafiam toda a sociedade, exigindo, de toda a comunidade, uma postura de inclusão, colaborando, nos termos do artigo terceiro da Constituição Federal, para sua integração social. Um portador de deficiência não integrado socialmente é a constatação da existência de baixo grau de democracia de um país.
Tal constatação enseja a necessidade de políticas públicas permanentes, além da implementação de instrumentos legais concretos e efetivos de inclusão, pois trata-se de conquistas civilizatórias em relação às quais a Constituição Federal não só impôs a vedação de retrocesso (ou proibição de proteção insuficiente), como também abriu caminhos para ampliar a inclusão das pessoas com deficiência, assim garantindo o direito das minorias naquilo que se pode ter como uma progressiva proteção.
A importância dessas conquistas se torna patente quando se constata que as pessoas com deficiência enfrentam todos os dias, e por toda a sua vida, reiterados desestímulos à inclusão social e laboral, sob o falso argumento de que as adaptações exigidas implicam custos. Trata-se de afirmação baseada em falsas premissas, pois os valores despendidos para as adaptações, na realidade, constituem investimento inerente não só ao cumprimento da função social da propriedade, mas também necessário para impulsionar o desenvolvimento sustentável do país, ao possibilitar que pessoas com deficiência atuem como cidadãos produtivos e participativos.
Neste sentido são as percucientes reflexões de Amartya Sen, ao argumentar que o respeito à diversidade possibilita a expansão da liberdade como o principal fim e o principal meio de assegurar o desenvolvimento de uma sociedade[13]:
O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer preponderantemente sua condição de agente […]. Indivíduos concebidos como agentes ativos das mudanças e não meros recebedores passivos de benefícios.
Portanto, o verdadeiro desafio consiste em promover mudanças culturais e de mentalidade para fazer valer o direito fundamental de não discriminação, conforme disposto nos arts. 3º, inc. iv, 5º, caput, e nos incs. xiii e xli, e ainda no art. 7º, xxxi, todos da Constituição Federal:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
Assim, essas diretrizes devem nortear as políticas públicas e a aplicação da lei que, no interesse de toda a sociedade, veda condutas (inclusive aquelas praticadas no exercício da autonomia privada coletiva) que impossibilitem a inclusão das pessoas com deficiência, as quais podem vir a ser consideradas discriminatórias.
Em nosso sistema jurídico, um dos critérios concretizadores dessa política de inclusão foi a instituição de um sistema de cotas, nos termos do art. 93 da Lei 8.213/91, que assim dispõe:
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados……………………….. 2%;
II – de 201 a 500………………………………….3%;
III – de 501 a 1.000………………………………4%;
IV – de 1.001 em diante………………………..5%;
V – (vetado).[14]
É imperioso recordar, ainda, que a Lei 8.213/91 expressamente protege de forma integral o regime de cotas, tendo o § 1º do art. 93 previsto:
A dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da Previdência social ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias e a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado somente poderão ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social.
Vê-se, assim, a existência de política pública específica para essas pessoas, a qual fixa, de forma clara, o dever dos empregadores de contratar pessoas com deficiência e reabilitados pelo inss[15]. A cota tem, ainda, delineamentos cristalinos, uma vez que estipula que deve ser considerado (i) o total de empregados na empresa, ou seja, deve ser considerado o total de empregados em todos os estabelecimentos da empresa, e (ii) o total de empregados, independentemente de função ou posição na empresa. A interpretação do texto legal deve, portanto, ser pautada por um viés inclusivo, de verdadeira promoção da efetiva inserção das pessoas com deficiência no ambiente laboral.
Assim, pode-se concluir que, por se tratar de política pública, com fundamento constitucional, não só a caracterização da pessoa com deficiência como a existência de cota para a sua contratação não se mostram sujeitas à autonomia da vontade coletiva, mas também que não é dado aos atores privados da relação laboral dispor sobre questão que, ao fim e ao cabo, não lhes compete negociar.
2.3. A pessoa com deficiência e a aprendizagem
Outra política de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho pode ser identificada nas especificidades do aprendiz com deficiência.
Ao tratar da aprendizagem, a clt veio caracterizá-la como:
Art. 428. Contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação.[16]
Ao assegurar trabalho protegido ao adolescente com deficiência, o art. 66 do eca (Lei 8.069/90), como observou com maestria Ricardo Tadeu Marques da Fonseca[17],
o faz com acerto, posto que duplas são as peculiaridades do adolescente portador de deficiência, as quais suscitam necessidade mais intensa de proteção, para que se lhes possibilite a integração adequada na sociedade, afastando-o da política de caridade meramente assistencial, que o impelirá inexoravelmente à marginalidade.
Destaque-se que a Lei 11.180/05 ampliou a proteção ao alterar o § 5º do art. 428 da clt, para ressalvar que a idade máxima prevista no caput não se aplica a aprendizes com deficiência.
A Lei 13.146/15 também conferiu nova redação ao § 6º do art. 428 da clt, determinando que “para os fins do contrato de aprendizagem, a comprovação da escolaridade do aprendiz com deficiência deve considerar, sobretudo, as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização”[18]. Ou seja, não se deve exigir, singelamente, comprovação de escolaridade do aprendiz com deficiência, mas sim aferir se ele possui disposição para a atividade que irá desenvolver.
É notório que as pessoas com deficiência enfrentam diversas dificuldades para sua formação, em especial no que se refere ao acesso à escola[19], [20], [21] – existência de transporte adequado, salas de aula inclusiva, material didático adaptado, compreensão e aptidão do corpo docente e técnico para lidar com uma pessoa com deficiência, a reiterada subestimação das capacidades e prática constante de desestímulo aos deficientes. Assim, desde tenra idade, é o deficiente desestimulado à inserção social. Não pode, pois, ser essa prática reproduzida como mais um fator a impedir o acesso do deficiente à aprendizagem. Basta, portanto, que o aprendiz com deficiência demonstre potencial, isto é, interesse no desempenho da atividade, para que desenvolva de forma adequada suas habilidades e competências, a fim de que possa ser tratado com igualdade em sociedade.
Essa postura inclusiva encontra outros delineamentos no ordenamento jurídico. Nesse contexto, o § 2º do art. 21-A da Lei 8.742/93 (loas – Lei Orgânica da Assistência Social), inserido pela Lei 12.470/11, dispõe que a contratação de aprendiz com deficiência não ensejará, de imediato, a interrupção ou suspensão no pagamento do benefício de prestação continuada (bpc)[22]: “A contratação de pessoa com deficiência como aprendiz não acarreta a suspensão do benefício de prestação continuada, limitado a 2 (dois) anos o recebimento concomitante da remuneração e do benefício”.
Tal disposição legislativa visa a evitar que o aprendiz com deficiência carente – que percebe, pois, benefício assistencial – tenha o pagamento do bpc interrompido ou suspenso caso inicie atividade remunerada, de modo a incentivar sua inserção social e econômica.
Com efeito, não raro são os aprendizes com deficiência carentes verdadeiros provedores das suas famílias, sendo o bpc responsável por assegurar um mínimo de renda para essas pessoas. A emancipação que se busca com a inserção das pessoas com deficiência carentes no mercado de trabalho, portanto, encontra incentivo na manutenção desse benefício, buscando, assim, estimular a formação profissional e também desatrelar o conceito de deficiência da ideia de incapacidade, possibilitando que a pessoa com deficiência atue na sociedade como cidadão produtivo, capaz de prover sua subsistência com a realização de um trabalho digno e decente.
Ao discorrer sobre o tema, Romeu Kazumi Sassaki[23] ressalta a importância dessa nova mentalidade, que conceitua a inclusão social como um “processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade”.
Não é incomum a constatação de que a inclusão da pessoa com deficiência melhora muito o relacionamento no ambiente de trabalho, pois o convívio com o diferente é enriquecedor e estimula maior empenho e comprometimento de todos.
Ademais, importa pontuar que não pode haver sobreposição de cotas, pois as situações jurídicas são distintas[24]. Com efeito, enquanto a aprendizagem tem por objetivo a capacitação, a fixação de cota para a pessoa com deficiência tem por escopo vedar a discriminação e assegurar a inclusão desses trabalhadores, tendo sido expressamente fixado pelo § 3º do art. 93 da Lei 8.213/91:
Para a reserva de cargos será considerada somente a contratação direta de pessoa com deficiência, excluído o aprendiz com deficiência de que trata a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1° de maio de 1943.
Conclui-se, aqui também, pela impossibilidade de negociar a forma de contratação de pessoas com deficiência, seja com a utilização da cota de contratação de aprendizes, seja através da adoção de parâmetros outros que não aqueles já fixados pelo ordenamento jurídico, e que constituem verdadeira política pública de inclusão.
A contraface da vedação da adoção de critérios limitativos e até mesmo discriminatórios para a contratação de pessoas com deficiência é o dever de promover medidas voltadas à sua inclusão[25].
Com a concretização da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – assim como com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) e diversos decretos regulamentadores – busca-se eliminar
qualquer barreira, entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação e compreensão às novas tecnologias, à circulação com segurança, […] a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais.
Nesse contexto, cabe registrar o Decreto 9.405/18, o qual, ao regulamentar o art. 122 da Lei 13.146/15, consigna que, para transpor obstáculos e barreiras, às pessoas com deficiência devem ser asseguradas condições de acessibilidade, adaptação razoável e tecnologia assistiva no local de trabalho, nos seguintes termos:
[…] acessibilidade – possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, e outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privado de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida;
[…] adaptações razoáveis – adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais.
[…] tecnologia assistiva – produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à autonomia, à independência, à qualidade de vida e à inclusão social.
Nessa senda, registre-se o constante do inc. i do art. 433 da clt, que prevê a impossibilidade de rescisão antecipada do contrato de aprendizagem quando a pessoa com deficiência estiver desprovida “de recursos de acessibilidade, de tecnologias assistivas e de apoio necessário ao desempenho de suas atividades”.
Ademais, vale mencionar o disposto no capítulo 9 do anexo II da Norma Regulamentadora 17 do Ministério do Trabalho, que trata de ergonomia:
9. PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
9.1. Para as pessoas com deficiência e aquelas cujas medidas antropométricas não sejam atendidas pelas especificações deste Anexo, o mobiliário dos postos de trabalho deve ser adaptado para atender às suas necessidades, e devem estar disponíveis ajudas técnicas necessárias em seu respectivo posto de trabalho para facilitar sua integração ao trabalho, levando em consideração as repercussões sobre a saúde destes trabalhadores.
9.2. As condições de trabalho, incluindo o acesso às instalações, mobiliário, equipamentos, condições ambientais, organização do trabalho, capacitação, condições sanitárias, programas de prevenção e cuidados para segurança pessoal devem levar em conta as necessidades dos trabalhadores com deficiência.
Tais critérios de proteção constituem preceitos de ordem pública, que visam a evitar a supressão ou a redução dos direitos das pessoas com deficiência e que o ordenamento jurídico trabalhista reconhece como fundamentais.
4. A VEDAÇÃO DA ADOÇÃO DE CRITÉRIOS DISCRIMINATÓRIOS À CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
A Convenção 111 da oit[26], que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 104/64 e promulgada pelo Decreto 62.150/68, estabeleceu em seus arts. 1º, item 3, 2º e 3º, alínea “a”:
ARTIGO 1º
3. Para os fins da presente convenção as palavras “emprego” e “profissão” incluem o acesso à formação profissional, ao emprego e às diferentes profissões, bem como as condições de emprego.
ARTIGO 2º
Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.
ARTIGO 3º
Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor deve, por métodos adequados às circunstâncias e os usos nacionais:
a) Esforçar-se por obter a colaboração da organização de empregadores e trabalhadores e de outros organismos apropriados, com o fim de favorecer a aceitação e aplicação desta política.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York em 30 de março de 2007, e internalizados pelo Brasil como emenda constitucional, ampliaram a proteção ao preconizarem em seus arts. 5º e 27:
Artigo 5º – Igualdade e não discriminação
1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.
2. Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. […]
Artigo 27 – Trabalho e emprego
1. Os Estados Parte reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.Esse direito abrange o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e promoverão a realização do direito ao trabalho, inclusive daqueles que tiverem adquirido uma deficiência no emprego, adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação, com o fim de, entre outros:
h) Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas.
As disposições transcritas, que ingressaram no ordenamento jurídico, respectivamente, com status supralegal, conforme o paradigmático acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal (stf) quando do julgamento do Recurso Extraordinário (re) 466.343[27], e com força de emenda constitucional, em conformidade com o disposto no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, devem ser interpretadas com outros preceitos, visto que há um verdadeiro sistema normativo constitucional subsidiando uma rede de proteção às pessoas com deficiência. Nesse sentido, tem-se o inc. xiv do art. 24, o inc. iv do art. 203, o inc. iii do art. 208 e o art. 227 da Constituição Federal, in verbis:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XIV – proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: […] III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. […] II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.
Em consonância com esse sistema protetivo, o inc. xxxi do art. 7º da Constituição Federal prevê:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
Nesse contexto, é oportuno trazer à colação o disposto no art. 170 da Constituição Federal, que dispõe que a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Tem-se mandamento constitucional a indicar vedação à proteção insuficiente, com determinação clara para que os particulares não busquem meios para deixar de cumprir o dever de inclusão das pessoas com deficiência, e adotem postura ativa no sentido de se promover essa inclusão. Acrescente-se ter a Lei 13.146/15 alterado o art. 1o da Lei 9.029/95 para fazer constar, expressamente, a proibição de “adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa” por motivo de deficiência não só para acesso, mas também para efeito de manutenção da relação de trabalho.
A Lei 13.146/15 determina, ademais, de forma clara, em seus arts. 34, § 3º, e 35:
Art. 34. A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
§ 1o As pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos.
§ 2o A pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor.
§ 3o É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.
§ 4o A pessoa com deficiência tem direito à participação e ao acesso a cursos, treinamentos, educação continuada, planos de carreira, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo empregador, em igualdade de oportunidades com os demais empregados.
§5o É garantida aos trabalhadores com deficiência acessibilidade em cursos de formação e de capacitação.
Art. 35. É finalidade primordial das políticas públicas de trabalho e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa com deficiência no campo de trabalho.
Parágrafo único. Os programas de estímulo ao empreendedorismo e ao trabalho autônomo, incluídos o cooperativismo e o associativismo, devem prever a participação da pessoa com deficiência e a disponibilização de linhas de crédito, quando necessárias.
Não se trata de conceder um favor, mas de respeitar o direito fundamental da pessoa com deficiência a ter a possibilidade de garantir sua subsistência pelo trabalho.
Tem-se, portanto, de forma bem delineada, a fixação de que a adoção de critérios diversos, não inclusivos, poderá ensejar a caracterização da conduta como discriminatória, a atrair, dessa forma, as cominações legais respectivas. Dentre essas condutas que podem ser tidas como discriminatórias encontram-se aquelas praticadas no exercício da autonomia da vontade coletiva, em que os entes coletivos econômico e profissional buscam, sob o suposto permissivo do art. 611-A da clt, fragilizar a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Portanto, a negociação de critérios excludentes, sem amparo em fator de discrimen[28] legítimo e legalmente admitido, caracteriza-se em discriminação ilícita, uma vez que é amparada em razões ilegais – mera exclusão de deficientes do mercado de trabalho –, o que enseja, por isso, a aplicação das sanções previstas no ordenamento jurídico.
5. AS SANÇÕES PREVISTAS EM LEI
Pondera José Afonso da Silva[29]: “Os valores sociais do trabalho estão precisamente na função de criar riquezas, de prover a sociedade de bens e serviços e, enquanto atividade social, fornecer à pessoa humana bases de sua autonomia e condições de vida digna”.
A fim de conferir efetividade a esse sistema protetivo, de matriz constitucional, a Lei 13.146/15 alterou a Lei 9.029/95, proibindo expressamente a prática de atos discriminatórios, nos seguintes termos:
Art. 1º É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
Nesse passo, a lei alterou também o art. 3º para fazer constar que, além da tipificação criminal das condutas lesivas, “resultantes de preconceito de etnia, raça, cor ou deficiência”, as infrações ao disposto na referida lei acarretarão “proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais” (inc. ii). Trata-se de sanção louvável, destinada a compelir o empregador a cumprir o mandamento constitucional que lhe atribui o cumprimento de função social, bem como de punir aqueles que, utilizando-se de um suposto permissivo legal conferido pelo art. 611-A da clt, buscam fragilizar política pública de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Assim, para além da punição que pode ser impingida ao empregador que atua de forma discriminatória, tem-se a possibilidade de que os entes sindicais também respondam por sua conduta, ainda que no exercício de sua autonomia da vontade coletiva, quando essa se mostrar discriminatória. Em outras palavras, abre-se a possibilidade da imputação de sanção aos entes sindicais que, atuando de forma discriminatória, negociam para excluir determinada categoria econômica do cumprimento da responsabilidade legal de inclusão.
6. A NEGOCIAÇÃO COLETIVA SOBRE QUESTÕES ENVOLVENDO PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL E LIMITES LEGAIS
Ao proceder à reforma trabalhista, a Lei 13.467/17 inseriu o art. 611-A na clt, predicando a prevalência das cláusulas convencionadas sobre a lei. Nesse contexto, questiona-se: permitiria o rol exemplificativo[30], que elencou em seus incisos diversos temas passíveis de acordo coletivo ou convenção coletiva, negociação em relação às normas protetivas e critérios legais previstos no sistema de cotas da pessoa com deficiência?
A questão se reveste de preocupante gravidade, porque o interesse demonstrado por alguns entes privados – sindicatos e empregadores – em negociar a redução da base de cálculo ou a restrição dos critérios caracterizadores das pessoas com deficiência, na verdade, traz consigo a assunção de que a autonomia privada coletiva pode afastar política pública fundamental e, assim, ser capaz de submeter o interesse público primário existente na matéria aos interesses privados dos entes negociantes.
Restringir o acesso ao trabalho da pessoa com deficiência viola, por certo, todo o ordenamento jurídico, que assegura uma série de proteções, assim como a própria Lei 13.467/17, que, ao tratar do tema, reproduziu previsão constitucional reafirmando expressamente:
Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos: […] XXII – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência.
Tal preceito indica que aos participantes de uma negociação coletiva não é dado restringir a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, cabendo-lhes, na realidade, função oposta, consubstanciada em conferir efetividade ao dever constitucional de inclusão, uma vez que erigido como direito fundamental a ser oposto não só de forma vertical em face do Estado, mas também entre particulares, traçando limites ao exercício da autonomia privada coletiva (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Ao discorrer sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes[31] afirmam que nossa “Constituição consagra um modelo de Estado Social, voltado para a promoção da igualdade substantiva”, e, por isso, “a eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada é direta e imediata”. Nesse contexto, ainda segundo os citados autores, a “incidência dos direitos fundamentais nas relações de trabalho é essencial para tornar estas relações mais humanizadas e justas, considerando o cenário de desigualdade e assimetria que as caracteriza”.
Vê-se, portanto, que qualquer cláusula que vise a suprimir ou reduzir os direitos que impedem a discriminação e a exclusão da pessoa deficiente está eivada de nulidade, uma vez que será considerada ilegal e inconstitucional, assim ensejando, também em âmbito coletivo, o ajuizamento de ações anulatórias e ações civis públicas por afronta ao inc. xxxi do art. 7º da Constituição Federal[32].
Dessarte, é inafastável a conclusão de que em nosso ordenamento jurídico o exercício da autonomia privada não pode violar os direitos fundamentais da pessoa com deficiência, garantidos expressamente pela Constituição Federal não só em face do Estado, mas também nas relações entre particulares, entre as quais estão incluídos os acordos coletivos e as convenções coletivas de trabalho.
As mudanças profundas empreendidas pela reforma trabalhista vêm suscitando discussões as mais diversas quanto ao cabimento da ação anulatória e da ação civil pública em relação à matéria ora em estudo.
A clt não disciplina a ação anulatória no processo trabalhista, o que atrai a aplicação subsidiária do regramento previsto no § 4º do art. 966 do Código de Processo Civil (cpc/15), in verbis:
§ 4º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei.
As ações anulatórias, que visam a desconstituir cláusulas previstas em acordos coletivos e convenções coletivas, são dotadas de natureza coletiva por provocarem efeitos que atingem todos os integrantes da categoria. Por tal razão, são as ações anulatórias de competência dos tribunais regionais do trabalho ou do Tribunal Superior do Trabalho.
Entretanto, se o pleito se referir ao afastamento da aplicação de determinada cláusula convencionada a um contrato individual de trabalho específico, a matéria pode ser apreciada de forma incidental em uma reclamação trabalhista. Com efeito, se o juízo de primeiro grau pode, em controle difuso, afastar a aplicação de lei que repute inconstitucional, nada impede que, de forma incidental, proceda ao controle da legalidade/convencionalidade/constitucionalidade da cláusula negociada, para afastar sua aplicação àquele contrato de trabalho, notadamente quando configurada violação aos direitos fundamentais trabalhistas, expressamente albergados pelo art. 7º da Constituição Federal, que em seu inc. xxxi proíbe expressamente qualquer discriminação do trabalhador com deficiência.
A mesma lógica, pois, aplica-se às ações civis públicas, nas quais são admitidas pretensões que se lastreiam no reconhecimento incidental da inconstitucionalidade de leis e atos normativos.
Tradicionalmente, admite-se, com fundamento no inc. iv do art. 83 da Lei Complementar 75/93, que o Ministério Público do Trabalho[33] tem legitimidade ativa e interesse processual para propor ação anulatória de cláusulas negociadas em acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho, quando violarem normas que preveem a inclusão de pessoas com deficiência, podendo pleitear, também, e por meio da ação civil pública, a imposição das penalidades previstas na Lei 9.029/95, além de eventual condenação em danos morais coletivos.
A possibilidade de o Ministério Público ajuizar tanto ação anulatória quanto ação civil pública, em relação a tal matéria, até então era admitida pela doutrina, que, embora distinguisse seus diferentes objetos e efeitos, procedia à interpretação ampliativa:
O entendimento de que apenas a ação anulatória é cabível na hipótese, e não a ação civil pública, é extremamente restritivo, pois não reflete os princípios constitucionais de proteção ao trabalho, tampouco a lógica das ações coletivas, estabelecida no artigo 83 da Lei 8.078/1990, no sentido de que para a defesa dos interesses e direitos coletivos são admitidas todas as ações que propiciem sua adequada e efetiva tutela.
Como será visto em item próprio, a opção por uma ou outra possui reflexos na prática. Em termos de efetividade da decisão, a ação civil pública é bem mais apropriada. No tocante à amplitude da matéria a ser devolvida por ocasião da interposição de recurso para o Tribunal Superior do Trabalho, a ação anulatória se apresenta mais conveniente. Assim, é o Procurador que deverá avaliar, diante do caso concreto, qual e a ação mais adequada para impedir os efeitos da violação ao ordenamento jurídico trabalhista.[34]
A questão nesses termos já estava superada por acórdão do próprio Supremo Tribunal Federal:
Ministério Público do Trabalho – Atribuições – Legitimação Ativa – Declaração de Nulidade de Contrato, Acordo Coletivo ou Convenção Coletiva – LC 75, de 20.05.1993, Art. 83, IV – CF, Arts. 128, § 5°, e 129, IX.I – A atribuição conferida ao Ministério Público do Trabalho, no art. 83, IV, da LC 75/93 – propor as ações coletivas para a declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores – compatibiliza-se com o que dispõe a CF no art. 128, § 5°, e art. 129, IX. II – Constitucionalidade do art. 83, IV, da LC 75, de 1993. ADIn julgada improcedente. STF – ADIn 1.852-1 – DF – TP – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 21.11.2003.– ADIn 1.852-1 – DF –Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 21.11.2003.
No entanto, em recente alteração de entendimento, vem o Tribunal Superior do Trabalho (tst) ensaiando mudança em sua jurisprudência, ao concluir pela rejeição da possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil pública em relação à matéria. Nesse sentido é a decisão proferida pela Seção de Dissídios Individuais (sdi) do Tribunal Superior do Trabalho ao julgar embargos opostos em decorrência do não conhecimento de recurso de revista, tendo o acórdão ressaltado as seguintes razões:
O Ministério Público sustenta que, ao contrário do entendimento do acórdão embargado, é a ação civil pública a apropriada para obter condenação de entes Sindicais de se absterem (obrigação de não fazer) de inserir determinadas cláusulas em futuros acordos e/ou convenções coletivas que vierem a celebrar, sob pena de multa.
Salienta que a competência para o exame da ação esta diretamente vinculada ao ajuizamento de uma ou outra (ação civil pública ou ação anulatória). O pedido do MPT, portanto, é o de que os Sindicatos Réus se abstenham de inserir em acordos e/ou convenções coletivos que, no futuro, celebrem, cláusulas que contemplem excesso de jornada e que diluam ou reduzam o intervalo intrajornada.
Entende que a via estreita da Ação Anulatória, de caráter declaratório, não admite a tutela pretendida. Lembra que não pediu nulidade de cláusula já vigente, mas a condenação dos Réus a não mais inserirem cláusulas com o conteúdo discriminado na ACP em futuros instrumentos coletivos.
Pugna pela reforma do acórdão com base em dissenso de julgados. Transcreve arestos para o confronto de teses.
O aresto oriundo da 1ª Turma deste Tribunal, às fls. 417/418, que impulsionou o processamento do presente recurso carece de especificidade. Senão vejamos:
Recurso de revista. Ação civil pública. Competência funcional. Local do dano. Vara do trabalho. Declaração Incidental de Nulidade de Cláusula de Convenção Coletiva de Trabalho. Contribuição assistencial de filiados e não filiados ao sindicato. Obrigação de fazer e não fazer. Adequação. I – A ação civil pública poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, e será proposta no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa (7.347/1985, arts. 2º e 3º; CDC, art. 93). Na Justiça do Trabalho, a delimitação da competência territorial da Vara do Trabalho é disciplinada pela Orientação Jurisprudencial nº 130 da SBDI-2 deste Tribunal, cuja ratio decidendi deixou de ser aplicada, na espécie. II – É firme a jurisprudência no sentido de que a ilegalidade de determinada lei (formal ou material, caso da norma coletiva autônoma peculiar ao Direito Coletivo do Trabalho) pode ser alegada em ação civil pública, desde que a título de causa de pedir e, nesta hipótese, o controle de legalidade terá caráter incidental, sem efeito erga omnes (art. 16 da Lei 7.347/1985). III – Na ação anulatória de cláusula coletiva não é possível cumulação do pedido de condenação em dinheiro e o de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (tutela inibitória), dada a sua natureza jurídica declaratória. Recurso de revista conhecido e provido (RR-800385-67.2005.5.12.0037, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, DEJT de 29.05.2015).
Com efeito, como se pode observar da transcrição acima, o referido paradigma oriundo da 1ª Turma deste Tribunal, às fls. 417/418, acima transcrito, revela-se inespecífico, nos moldes da Súmula 296, I, desta Corte, pois não trata da hipótese destes autos, em que a egrégia Turma considerou que o pedido formulado em ação civil pública – de que os requeridos se abstenham de fazer constar nos instrumentos coletivos futuros que celebrarem um com o outro, ou com quaisquer outras entidades sindicais e empregadores, cláusulas que exorbitem o limite máximo de labor de dez horas diárias, conforme preconiza o artigo 59, § 2°, da CLT ou que dilua ou reduza o intervalo intrajornada abaixo do mínimo fixado no artigo 71 da CLT, exceto se houver prévia autorização do Ministério do Trabalho e Emprego – equivale, de forma oblíqua, à declaração de nulidade das cláusulas coletivas que amparam as condutas da empresa em detrimento da legislação vigente, que desafia o ajuizamento de ação anulatória perante o Tribunal Regional.
Incide, portanto, na espécie o óbice contido na Súmula 296, I, deste Tribunal.
Os outros dois arestos, transcritos às fls. 419/423, não se prestam ao fim pretendido, porque oriundo da SDC, órgão em cujas decisões não está elencado no artigo 894, II, da CLT, como capaz de propiciar o confronto de teses para estabelecer o dissenso jurisprudencial.
(Processo: E-RR – 198000-54.2009.5.03.0152. Data de Julgamento: 22.02.2018, Relator Ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 02.03.2018).[35]
Todavia, ao abrir um amplo leque de novas possibilidades de negociação coletiva no art. 611-A da clt, conferindo-lhe prevalência sobre a norma estatal, a Lei 13.467/17 certamente provocará mudanças, não só quanto à ampliação das hipóteses de cabimento da ação civil pública, mas também no que se refere à necessidade de conferir maior abrangência à ação anulatória, cada qual com seus efeitos próprios, que passam a revestir-se de notória relevância.
Neste novo cenário, a proteção dos interesses e direitos coletivos deveria implicar a ampliação dos meios disponíveis de acesso à justiça, admitindo-se, em vez da restrição, maiores possibilidades de impugnação de acordos coletivos e convenções coletivas que se mostrem contrárias ao ordenamento jurídico.
Nesse sentido, deve-se admitir o manejo da ação civil pública quando a impugnação à cláusula vigente estiver restrita apenas à causa de pedir, não se constituindo, portanto, em pedido, o qual, a seu turno, estará voltado à concessão de tutela inibitória (obrigação de fazer / não fazer) cujo escopo será o de evitar que em futuros acordos coletivos ou convenções coletivas sejam inseridas cláusulas que violem direitos fundamentais da pessoa com deficiência. A pretensão veiculada busca garantir a integridade do ordenamento jurídico, ao impedir que o ilícito se repita, muitas vezes com efeitos irreversíveis.
Por outro lado, a valorização da negociação coletiva vai exigir também nova configuração da ação anulatória que objetiva impugnar, no pedido, cláusula coletiva existente no momento presente, com o reconhecimento de que, além de declaratória, agora passa a ter também natureza cominatória, ante a previsão contida nos §§ 4º e 5º do art. 611-A da clt, abrindo a possibilidade da imposição da obrigação de fazer/não fazer (tutela inibitória) em relação a determinada cláusula que esteja em vigor, tendo por escopo impedir a violação ao ordenamento jurídico trabalhista, assim garantindo a atividade satisfativa da jurisdição, com a solução efetiva do conflito.
Essa vertente ampliativa da ação anulatória já fora sinalizada por Carreira Alvim[36], ao prever a possibilidade de o autor pleitear, com espeque no art. 303 do cpc, a concessão de “tutela antecipada em caráter antecedente, para invocar em seu favor uma tutela liminar, quando a urgência for contemporânea ao exercício da ação”, questão que se reveste de notória importância na seara trabalhista, quando se tornar imperioso fazer cessar de imediato os efeitos nefastos provocados por cláusula negociada ilegal, que viole direitos fundamentais.
É necessário reconhecer que a Lei 13.467/17 (reforma trabalhista) abriu novos debates nessa seara, o que certamente provocará a revisitação de conceitos, tanto no que se refere à ação civil pública ajuizada com o escopo de inibir a inserção de cláusulas ilegais em negociações futuras quanto à ampliação do objeto e efeitos da ação anulatória de cláusulas inseridas em acordos coletivos e convenções coletivas, a fim de evitar que a valorização da negociação coletiva seja utilizada de forma abusiva, em afronta à ordem jurídica justa e efetiva, posta pelo ordenamento constitucional, cenário em que a atuação fiscalizatória do Ministério Público se reveste de significativa importância[37], notadamente quando se trata de questão afeta à inclusão das pessoas com deficiência.
CONCLUSÃO
Assegurar trabalho decente à pessoa com deficiência, conferindo-lhe um grau maior de proteção para ter autonomia e acesso à inclusão social, significa reconhecer sua dignidade.
As alterações promovidas pela Lei 13.467/17, ao inserir o art. 611-A na clt, estabelecendo a prevalência da convenção coletiva e do acordo coletivo de trabalho sobre a lei, devem ser interpretadas sob as balizas traçadas pelo sistema protetivo garantido pela Constituição Federal, explicitadas pelo inc. xxii do art. 611-B da clt, que veda a adoção, por negociação coletiva, de qualquer postura discriminatória no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência, assim mantendo incólume o sistema de cotas.
Portanto, o exercício da autonomia privada coletiva não pode violar os direitos fundamentais das pessoas com deficiência, que foram assegurados pela Constituição Federal de 1988 não só em face do Estado, mas também nas relações entre particulares. Isso porque o estímulo à inserção da pessoa com deficiência não pode ser considerado apenas sob a perspectiva privada. Possibilitar sua atuação como cidadão produtivo e capaz de prover sua própria subsistência traz benefícios para a própria sociedade, encerrando, assim, verdadeiro interesse público primário.
Ademais, considera-se equivocado o argumento dos que resistem à aplicação da lei sob a alegação de provocar custos, quando o cumprimento da norma legal representa um investimento, na medida em que otimiza o bom relacionamento no ambiente de trabalho e fortalece os laços de cidadania respaldada no respeito às diferenças, o que resultará no reconhecimento do empregador que cumpre sua função social, fator que gera efeitos relevantes ao atrelar seu nome a uma boa imagem.
O sistema garantista de proteção à pessoa com deficiência milita não só em favor da solidez das instituições republicanas, mas também em prol do desenvolvimento sustentável do país, que deve ser lastreado em meio ambiente laboral saudável, o que necessariamente implica o convívio com a diferença, mediante a vedação de práticas discriminatórias.
Tereza Aparecida Asta Gemignani. Desembargadora do trt 15. Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (usp). Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (andt), Cadeira n. 70. Daniel Gemignani. Procurador do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (mpt). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc/sp). Especialista em Auditoria Fiscal em Saúde e Segurança no Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs) e em Direito Aplicado ao Ministério Público do Trabalho pela Escola Superior do Ministério Público da União (esmpu). Mestrando em Direitos Humanos e Inclusão Social (Faculdade de Direito da usp). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – pucsp. Ex-auditor-fiscal do Trabalho (aft). |
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NOTAS
[1] Ressalte-se, aqui, a edição do Protocolo de Ação Conjunta 001/2018, celebrado entre o Ministério Público do Trabalho e o extinto Ministério do Trabalho, no sentido de que “ambos os órgãos
[assumem o compromisso]
de combater, cada qual em sua área de atuação, a alteração da base de cálculo da cota de aprendizes e de pessoas com deficiência ou reabilitadas por meio de instrumentos de negociação coletiva”. Disponível em: https://pcd.mppr.mp.br/arquivos/File/MPT_-_A_impossibilidade_de_acordos_coletivos_ou_convencoes_coactivas_de_trabalho.pdf. Acesso em: 14 jul. 2018.
[2] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-dos-Portadores-de-Defici%C3%AAncia/declaracao-de-direitos-das-pessoas-deficientes.html. Acesso em 20 jul. 2018.
[3] O Decreto 129/91, que promulgou a Convenção 159/OIT, foi revogado pelo Decreto 10.088/19, que “consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil”.
[4] UNIÃO EUROPEIA. Manual sobre a legislação europeia antidiscriminação. Luxemburgo: Serviço das publicações da União Europeia, 2011, p. 28-29. Disponível em: http://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/1510-FRA_CASE_LAW_HANDBOOK_PT.pdf. Acesso em 20 jul. 2018.
[5] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques. Os efeitos da 8ª Convenção Internacional da ONU e o acesso ao mercado de trabalho para as pessoas com deficiência. São Paulo: RT.Revista de Direito do Trabalho | vol. 128/2007 | p. 390 – 396 | Out – Dez / 2007.
[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 525.
[7] DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 9.
[8] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 13-14.
[9] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2017, p. 421.
[10] São importantes, pois, as observações de Maria Aparecida Gugel (GUGEL, Maria Aparecida. O mundo do trabalho e as pessoas com deficiência. p. 277-302. In: Ministério Público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. In: RAMOS, André de Carvalho et al.; GONZAGA, Eugênia Augusta; MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de (org.). Brasília: ESMPU, 2018): “Para a composição da reserva de cargos concorrem todas as naturezas de deficiência já conhecidas como a física, a sensorial (cegos e surdos) e a intelectual (relacionada ao déficit cognitivo), acrescida da deficiência mental, associada à saúde mental. A avaliação da deficiência, necessária para a reserva de cargos, para não gerar desigualdade entre as pessoas com deficiência, será biopsicossocial e feita por equipe multiprofissional. A avaliação será baseada em instrumento de avaliação nos moldes e parâmetros da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) conforme a classificação indicada nos itens I-IV, parágrafo 1º, do art. 2º da LBI, isto é, os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação. Para tanto, deverão ser criados instrumentos específicos que, espera-se, sejam uniformes para todas áreas que necessitem adotá-los como a previdência, a assistência social, a saúde e a reabilitação, o trabalho, entre outros. Daí porque afirmar-se que a designação das deficiências, baseada no padrão médico dos Decretos n. 3.298/1999 e n. 5.296/2004, está revogada. No entanto, até a edição do instrumento de avaliação a que se refere o art. 2º, parágrafo 2º, da LBI e diante da lacuna legal, entende-se que as designações dos referidos decretos servem somente como balizas para identificar as naturezas das deficiências a serem aplicadas em conjunto com os parâmetros de avaliação levados a efeito pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome para a concessão do benefício da prestação continuada e que resultou na Avaliação Médico-Pericial e Social da Incapacidade para Vida Independente e para o Trabalho (AMES/BPC), além daqueles concernentes à concessão da aposentadoria especial da Previdência Social previstos no Decreto n. 8.145/2013, visto que ambos foram concebidos seguindo o conceito de pessoa com deficiência da CDPD e algumas das regras da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF)”.
[11] “Art. 124. O § 1º do art. 2º desta Lei deverá entrar em vigor em até 2 (dois) anos, contados da entrada em vigor desta Lei.”.
[12] ARAÚJO, Luiz Alberto David. Temas relevantes de direito material e processual do trabalho: estudos em homenagem ao professor Pedro Paulo Teixeira Manus. São Paulo: LTr, 2000, p. 82.
[13] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 10.
[14] Vale a observação de que o dispositivo do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que previa a reformulação do artigo 93 da Lei 8.213/91, foi vetado, conforme Mensagem 246: “O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior solicitou veto aos dispositivos a seguir transcritos:
Caput, incisos, e §4º do art. 93 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, alterados pelo art. 101 do projeto de lei
“Art. 93. As empresas com 50 (cinquenta) ou mais empregados são obrigadas a preencher seus cargos com pessoas com deficiência e com beneficiários reabilitados da Previdência Social, na seguinte proporção:
I – de 50 (cinquenta) a 99 (noventa e nove) empregados, 1 (um) empregado;
II – de 100 (cem) a 200 (duzentos) empregados, 2% (dois por cento) do total de empregados;
III – de 201 (duzentos e um) a 500 (quinhentos) empregados, 3% (três por cento) do total de empregados;
IV – de 501 (quinhentos e um) a 1.000 (mil) empregados, 4% (quatro por cento) do total de empregados;
V – mais de 1.000 (mil) empregados, 5% (cinco por cento) do total de empregados.
[…] § 4º O cumprimento da reserva de cargos nas empresas entre 50 (cinquenta) e 99 (noventa e nove) empregados passará a ser fiscalizado no prazo de 3 (três) anos.
Razões dos vetos
“Apesar do mérito da proposta, a medida poderia gerar impacto relevante no setor produtivo, especialmente para empresas de mão de obra intensiva de pequeno e médio porte, acarretando dificuldades no seu cumprimento e aplicação de multas que podem inviabilizar empreendimentos de ampla relevância social”.
[15] GUGEL, Maria Aparecida. O mundo do trabalho e as pessoas com deficiência. In: GONZAGA, Eugênia Augusta; MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. (org.). Ministério Público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. Brasília: ESMPU, 2018, p. 227: “Não se iluda, no mundo do trabalho, não fosse a lei de ordem pública (Lei n. 8.213/1991) obrigando ao cumprimento de reserva de postos de trabalho para trabalhadores com deficiência em empresas com cem ou mais empregados, não haveria lugar nem vez para trabalhadores com deficiência, seja por preconceito explícito em relação às suas capacidades laborativas, seja em relação aos argumentos de eventuais custos a serem arcados pelo empregador para tornar o ambiente de trabalho acessível.”.
[16] Diversas são as possibilidades para o cumprimento da cota de aprendizes. Pode-se, pois, empregar e matricular o aprendiz, seja em programas oferecidos pelo Sistema “S”, seja em Escolas Técnicas de Educação ou em entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, ou em entidades de prática desportiva das diversas modalidades filiadas ao Sistema Nacional do Desporto e aos Sistemas de Desporto dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Pode, ademais, realizar as aulas práticas exclusivamente nas entidades qualificadas em formação técnico profissional (ambiente simulado) ou cumprir a cota em entidade concedente da experiência prática do aprendiz – como órgãos públicos, organizações da sociedade civil, nos termos do art. 2º da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 e unidades do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase (cota social).
Por fim, pode-se cumprir a cota através das entidades mencionadas nos incisos II e III do artigo 430, ou seja, por meio de entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ou de entidades de prática desportiva das diversas modalidades filiadas ao Sistema Nacional do Desporto e aos Sistemas de Desporto dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
[17] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques. O trabalho protegido do portador de deficiência. São Bernardo do Campo: Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. 2001.p. 267 a 275.
[18] Nesse sentido é o novel artigo 45, parágrafo único, do Decreto 9.579/18, que estabelece: “Art. 45. Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado não superior a dois anos, em que o empregador se compromete a assegurar ao aprendiz, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz se compromete a executar, com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação.
Parágrafo único. A comprovação da escolaridade de aprendiz com deficiência psicossocial deverá considerar, sobretudo, as habilidades e as competências relacionadas com a profissionalização”.
[19] Como bem observa Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, “a escola que não aceita as crianças e os jovens surdos, cegos ou com deficiências mentais nega cidadania não só a eles, mas a todos os seus alunos, que perdem assim, a oportunidade de aprender com as diferenças” (FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. Lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho, uma ação afirmativa.São Paulo: LTr, 2007, p. 154).
[20] MENDES, Rodrigo Hübner. Ciladas da dicotomia entre inclusão e aprendizagem. In: GONZAGA, Eugênia Augusta; MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. (org.). Ministério Público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. Brasília: ESMPU, 2018, p. 231: “Não há dúvida de que a construção de redes de ensino inclusivas é extremamente desafiadora. Entre outras coisas, demanda comprometimento e disposição para mudanças estruturais. Contudo, escolas como a Clarisse Fecury e a Henderson School transcendem a teoria e oferecem respostas objetivas ao cômodo discurso do despreparo. É bom lembrar que a exclusão das pessoas com deficiência do mercado de trabalho é, quase sempre, fruto de uma baixa escolaridade e da inexperiência de convívio da maioria da população com esse segmento. […] Não bastasse ser um direito, a educação inclusiva é uma resposta mais inteligente às demandas do mundo contemporâneo. Incentiva uma pedagogia não homogeneizadora e desenvolve competências interpessoais. A sala de aula deveria espelhar a diversidade humana, não escondê-la. Claro que isso gera novas tensões e conflitos, mas também estimula as habilidades morais para a convivência democrática. O resultado final é uma educação melhor para todos”.
[21] Nesse sentido, cita-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.357, que considerou constitucional dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência que dispunham sobre o ensino inclusivo, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.590 que, em medida cautelar, suspendeu o Decreto 10.502/20, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, e incentivou a criação de escolas e classes específicas para pessoas com deficiência.
[22] Outros incentivos também constam do ordenamento jurídico, conforme GUGEL, Maria Aparecida. O mundo do trabalho e as pessoas com deficiência. In: GONZAGA, Eugênia Augusta; MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. (org.). Ministério Público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. Brasília: ESMPU, 2018, p. 292-293: “O art. 40 da LBI assegura à pessoa com deficiência que não possua meios para prover sua subsistência nem de tê-la provida por sua família o benefício mensal de um salário-mínimo, nos termos da Lei n. 8.742/1993 (LOAS), o que significa afirmar que não mais prevalecem as concepções de incapacidade para o trabalho para o recebimento do benefício assistencial. Essa nova proposição está mais consentânea com as alterações ocorridas na LOAS por força da Lei n. 12.470/2011, ou seja, a possibilidade de o jovem aprendiz acumular o benefício da prestação continuada (BPC) com a remuneração do contrato de aprendizagem pelo período de dois anos (arts. 20, parágrafo 9º, e 21-A, parágrafo 2º). Igualmente quanto à possibilidade de a pessoa com deficiência ter seu benefício suspenso se exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual (art. 21-A), e poder retornar à condição de beneficiário da assistência social. […] Outro critério inovador trazido pela LBI no art. 94 é o direito ao auxílio-inclusão para pessoas com deficiência moderada ou grave que recebem o BPC, ou o tenham recebido nos últimos cinco anos, e escolhem passar a exercer uma atividade remunerada, em qualquer modalidade (contrato de trabalho, microempreendedor, trabalhador autônomo, por exemplo), e desde que sejam enquadradas como segurados obrigatórios do Regime Geral da Previdência Social. Nesse caso, segue-se a regra da suspensão do BPC. Enquanto a pessoa com deficiência “moderada ou grave” permanecer na atividade remunerada, poderá acumular o salário com o auxílio-inclusão (salário + auxílio-inclusão). Essa acumulação, em vista dos atributos dos regimes assistenciais e do celetista, só é possível se o auxílio-inclusão não for considerado benefício assistencial. […] A natureza desse auxílio-inclusão é retributiva e pretende-se que funcione como um incentivo, um estímulo, um prêmio pago à pessoa com deficiência que ingresse no mundo do trabalho. Espera-se a regulamentação do auxílio-inclusão da pessoa com deficiência o mais breve possível, visto que seu objetivo principal é incentivar a pessoa com deficiência moderada ou grave a se lançar no mundo do trabalho, mantendo o recebimento do valor do auxílio-inclusão para as despesas decorrentes de manutenção e necessidades da natureza da deficiência. Com isso, o receio (justo) de perda do BPC é compensado pelo auxílio-inclusão, acrescido da remuneração decorrente do contrato de trabalho, o que irá contribuir para a sua plena participação da vida em sociedade”.
[23] SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de janeiro: WVA, 1997, p. 39.
[24] Observa-se, aqui, a existência da Instrução Normativa 98/12, da Secretaria e Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho (SIT/MTb), em seus artigos 16 e 17: “Art. 16. Constatados motivos relevantes que impossibilitam ou dificultam o cumprimento da reserva legal de cargos para pessoas com deficiência ou reabilitadas, poderá ser instaurado o procedimento especial para ação fiscal, por empresa ou setor econômico, previsto no art.627-A da CLT e nos arts. 27 a 29 do Decreto nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002, observadas as disposições desta Instrução Normativa e da Instrução Normativa nº 23, de 23 de maio de 2001.
Parágrafo único. O procedimento especial para a ação fiscal da inclusão de pessoa com deficiência ou reabilitada será instaurado pelo AFT, com anuência do coordenador do Projeto e da chefia imediata.
Art. 17. O procedimento especial para a ação fiscal poderá resultar na lavratura de termo de compromisso, no qual serão estipuladas as obrigações assumidas pelas empresas ou setores econômicos compromissados e os prazos para seu cumprimento.
§ 1º Nas reuniões concernentes ao processo de discussão e elaboração do termo de compromisso é permitida a participação de entidades e instituições atuantes na inclusão das pessoas com deficiência, bem como entidades representativas das categorias dos segmentos econômicos e profissionais.
§ 2º O termo de compromisso deve conter, no mínimo, as seguintes obrigações por parte dos compromissados: I – proibição de discriminação baseada na deficiência, com respeito às questões relacionadas com as formas de emprego, de acordo com o especificado no art. 11; II – identificação das barreiras porventura existentes e promoção da acessibilidade em suas diversas formas, respeitadas as necessidades de cada pessoa; III – promoção de campanhas internas de valorização da diversidade humana e de combate à discriminação e ao assédio; IV – promoção de qualificação profissional da pessoa com deficiência ou reabilitada, preferencialmente na modalidade de aprendizagem; e V – impossibilidade de dispensa de trabalhador reabilitado ou com deficiência, sem a prévia contratação de substituto de condição semelhante, na hipótese de término de contrato por prazo determinado de mais de noventa dias, ou dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado.
§ 3º O prazo máximo do termo de compromisso será de doze meses, excetuado o caso em que o cumprimento da reserva legal esteja condicionado ao desenvolvimento de programas de aprendizagem profissional de pessoas com deficiência, nos termos do art. 429 da CLT, caso em que o prazo máximo será de vinte e quatro meses.
§ 4º Em caráter excepcional, e em face de projetos específicos de inclusão e qualificação profissional ou dificuldades comprovadamente justificadas, os prazos estipulados no § 3° poderão ser ampliados, com observância aos procedimentos estabelecidos pelas normas de regência.
§ 5º O termo de compromisso deve estabelecer metas e cronogramas para o cumprimento da reserva legal de forma gradativa, devendo a empresa, a cada etapa estipulada, apresentar variação positiva do percentual de preenchimento e, ao final do prazo, comprovar o cumprimento integral da reserva legal estipulada no art. 93 da Lei 8.213, de 1991, e dos demais compromissos assumidos.
§ 6º Durante o prazo fixado no termo de compromisso, devem ser feitas fiscalizações nas empresas, a fim de ser verificado o seu cumprimento, sem prejuízo da ação fiscal relativa a atributos não contemplados no referido termo.
§ 7° Frustrado o procedimento especial para a ação em face de não atendimento da convocação, recusa de firmar termo de compromisso, descumprimento de qualquer cláusula compromissada, devem ser lavrados, de imediato, os respectivos autos de infração, e poderá ser encaminhado relatório circunstanciado ao Ministério Público do Trabalho e demais órgãos competentes”.
[25] A despeito de toda a sistemática legal, vale o registro do veto a dispositivo do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que assim previa, conforme Mensagem de Veto 246: “O Ministério das Cidades manifestou-se pelo veto aos seguintes dispositivos:
Inciso II do art. 32
II – definição de projetos e adoção de tipologias construtivas que considerem os princípios do desenho universal; […]
Razões do veto
Da forma ampla como prevista, a medida poderia resultar em aumento significativo dos custos de unidades habitacionais do Programa Minha Casa, Minha Vida, além de inviabilizar alguns empreendimentos, sem levar em conta as reais necessidades da população beneficiada pelo Programa. Além disso, no âmbito do próprio Minha Casa, Minha Vida, é previsto mecanismo para garantia da acessibilidade das unidades habitacionais, inclusive com as devidas adaptações ao uso por pessoas com deficiência”.
[26] A Convenção 111 da OIT trata da “discriminação em matéria de emprego e profissão”, tendo sido aprovada pelo Decreto Legislativo 104/64 e promulgada pelo Decreto 62.150/68.
[27] A referida posição vem sendo reafirmada pelo STF, conforme se nota da seguinte decisão: “Esse caráter supralegal do tratado devidamente ratificado e internalizado na ordem jurídica brasileira – porém não submetido ao processo legislativo estipulado pelo artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal – foi reafirmado pela edição da Súmula Vinculante 25, segundo a qual ‘é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito’. Tal verbete sumular consolidou o entendimento deste tribunal de que o artigo 7º, item 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos teria ingressado no sistema jurídico nacional com status supralegal, inferior à Constituição Federal, mas superior à legislação interna, a qual não mais produziria qualquer efeito naquilo que conflitasse com a sua disposição de vedar a prisão civil do depositário infiel. Tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos humanos, uma vez ratificados e internalizados, ao mesmo passo em que criam diretamente direitos para os indivíduos, operam a supressão de efeitos de outros atos estatais infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena efetivação” (ADI 5240, Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em: 20.8.2015, DJe de 1.2.2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1268. Acesso em: 12 jul. 2018.
[28] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 37-41: “30. O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele […] 32. Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto […] 34. Por derradeiro cumpre fazer uma importante averbação. A correlação lógica a que se aludiu, nem sempre é absoluta, ‘pura’, a dizer, isenta da penetração de ingredientes próprios das concepções da época, absorvidos na intelecção da época. […] 41. Por último, registre-se que o respeito ao princípio da igualdade reclama do exegeta uma vigilante cautela, a saber: Não se podem interpretar como desigualdades legalmente certas situações, quando a lei não haja ‘assumido’ o fato tido como desequiparador. Isto é, circunstâncias ocasionais, que proponham fortuitas, acidentais, cerebrinas ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar”.
[29] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 39.
[30] Não obstante as discussões ainda presentes no Supremo Tribunal Federal, cita-se, em caráter exemplificativo, decisão proferida pelo Ministro Luiz Fux no Agravo Regimental na Reclamação 40.013/MG, em que se concluiu não só pela ausência de estrita aderência” com o quanto que vem sendo discutido no Agravo em Recurso Extraordinário 1.121.633 (Tema 1.046 da Repercussão Geral), como se afirmou, na p. 8 da decisão: “Nesse cenário, numa análise mais aprofundada dos autos, tenho que a controvérsia constitucional posta em debate nos autos do ARE 1.121.633 não guarda similitude fática com o caso concreto. Isso porque, enquanto o paradigma em referência cinge-se à validade de norma coletiva sobre direito não assegurado constitucionalmente, nos autos da ação anulatória em que proferido o decisum impugnado, a controvérsia jurídica gira em torno de direitos têm assento constitucional (art. 7º, XXXI; art. 203, IV; art. 227, caput e §1º, II), não estando a hipótese em tela abarcada, portanto, pelo Tema 1.046 da Repercussão Geral”.
[31] SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. São Paulo: Lex Magister. Revista TST. v.77, n. 4, out./dez. 2011, p. 82-84;101.
[32] TRT/SP- SDC 0297200500002001- Ação anulatória. Artigo 93 da Lei 8.213/1991.
[33] A legitimidade ativa e o interesse processual do Parquet constam, ainda, dos artigos 3º e 7º da Lei 7.853/89.
[34] PEREIRA, Ricardo José Macedo de Britto. Ação Civil Pública no Processo do Trabalho. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 200.
[35] No mesmo sentido, pode-se citar: “Agravo. Recurso de embargos. Interposição sob a égide da Lei 13.015/2014. Ação civil pública. Nulidade de cláusula de convenção coletiva. Não cabimento.Ante a demonstração de divergência jurisprudencial, merece ser admitido o recurso de embargos.
Agravo conhecido e provido.
Recurso de embargos. Interposição sob a égide da Lei 13.015/2014. Ação civil pública. Nulidade de cláusula de convenção coletiva. Eficácia ultra partes. não cabimento. 1. Hipótese em que a e. Turma entendeu pelo cabimento da ação civil pública, ao fundamento de que “quando o pedido de anulação de cláusula coletiva detiver caráter incidental, com a cumulação de pedido de condenação, é cabível a ação civil pública”. 2. Entretanto, a teor do que prescreve o art. 3º da Lei nº 7.347/85, a Ação Civil Pública ostenta natureza eminentemente cominatória – ou seja, visa à imposição de condenação pecuniária ou ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou de não-fazer. Assim, na esteira de precedentes desta Corte, A Ação Civil Pública, com eficácia ultra partes, não constitui meio adequado para veicular a pretensão do Parquet de ver declarada a nulidade de cláusula de norma coletiva, que desafia o ajuizamento de ação própria perante o juízo competente. Precedentes”. (Processo: E-RR – 281-80.2014.5.01.0302. Data de Julgamento: 23.11.2017, Relator Ministro: Hugo Carlos Scheuermann, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 01.12.2017).
[36] ALVIM, J. E. Carreira. Desvendando uma incógnita: a tutela antecipada antecedente e sua estabilização no novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista de Processo MP/SP. n. 41. v. 259, set./2016, p. 177-207.
[37] Sustentando posição ampliativa das pretensões deduzidas em ação civil pública, cita-se OLIVEIRA NETO, Alberto Emiliano de. Ação civil pública trabalhista com pedido constitutivo negativo (declaração de nulidade). Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 12, n. 40, p. 11-30, jan./jun. 2013, p. 26: “Em regra, não se presta a ação anulatória à obtenção de tutela inibitória destinada a impedir a repetição da conduta contrária ao ordenamento jurídico. Quer dizer, a procedência da ação anulatória materializada mediante a supressão dos efeitos de cláusulas ilícitas inseridas em acordos e convenções coletivas de trabalho não impede que as entidades sindicais e empregadores signatários repitam redação idêntica em instrumentos normativos futuros. Para essa hipótese, tão somente a ação civil pública, cujo objeto é a obrigação de fazer ou não fazer, poderá obstar efetivamente a conduta contrária à ordem jurídica. […] A ação civil pública representa o instrumento processual mais efetivo no combate a cláusulas inseridas em acordos e convenções coletivas de trabalho, cuja redação contrarie direitos fundamentais sociais dos trabalhadores. Somente a tutela inibitória concedida pela autoridade judicial será capaz de efetivamente preservar os interesses dos trabalhadores em face da conduta sindical que, inexplicavelmente, segue em rumo oposto. […]. Buscando-se a efetiva tutela do bem jurídico violado, defende-se a possibilidade de cumulação da tutela inibitória (decisão condenatória) acrescida de provimento jurisdicional constitutivo negativo, com fundamento na amplitude de objeto da ação civil pública (Lei n. 8.078/1990, art. 83), para fins de supressão do mundo jurídico da cláusula inserida em acordo ou convenção coletiva de trabalho que seja atentatória aos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores. […] Propõe-se, portanto, a cumulação de pedido condenatório, veiculado mediante tutela inibitória destinada a impedir a repetição da cláusula impugnada em instrumentos normativos coletivos futuros, com pedido constitutivo negativo, próprio das ações anulatórias, para fins de afastar do mundo jurídico os efeitos jurídicos da cláusula normativa impugnada”.