Por Cláudio Álvares Sant`Ana e Joaquim Leitão Júnior
Na última década, a sociedade vem passando por intensa evolução dos meios digitais e tecnológicos, com a consequente substituição de sistemas tradicionais até então já consagrados por outros informatizados. Tal narrativa é facilmente vislumbrada quando se faz uma análise comparativa entre alguns ramos comerciais de alguns anos atrás e seu contexto atual, assim como os meios de interações interpessoais.
Classificados em jornais de grande circulação eram o meio mais comum de comercialização de bens móveis e imóveis na sociedade, sendo substituídos por plataformas de comércio virtual. Da mesma forma, o transporte urbano, para quem não possuía veículo próprio e optava por meio de locomoção mais cômodo, era realizado pelo lendário táxi, sendo praticamente extinto com o advento de aplicativos de transporte particular.
Nesse viés, os diálogos que ocorriam na maioria das vezes de maneira pessoal e por meio de ligações telefônicas, quando existia a barreira da distância entre interlocutores, atualmente dão lugar aos aplicativos de conversas instantâneas criptografadas ou não, a depender do aplicativo. Toda evolução digital até então vislumbrada vem sendo aplicada de maneira a trazer maior comodidade aos seus usuários, que passaram a dominar praticamente todas as nuances do mundo moderno, do conforto de suas residências, com um único clique em seu aparelho smartphone.
As facilidades dos meios digitais, aliadas a seu acesso indiscriminado a todas as faixas etárias, representam um vasto espaço para a prática das mais diversas modalidades criminosas existentes no nosso ordenamento jurídico. Adolescentes, por passarem a maioria do tempo conectados e online, tornam-se alvos fáceis para cibercriminosos, que detêm nas redes sociais o seu campo de atuação para o cometimento de crimes, principalmente os de conotação sexual.
Atento a tais mudanças de comportamento social, o legislador tipificou o ato de aliciamento de crianças por qualquer meio de comunicação no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 241-D, nos seguintes termos:
Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela Lei 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei 11.829, de 2008).
Ao proceder a análise detida da referida norma, o operador jurídico se depara com o tipo penal que descreve a conduta tendo como vítima criança. Contudo, omitiu a figura da vítima adolescente. Por lapso legislativo, o legislador reformista do eca, no ano de 2008, ao acrescentar o tipo penal transcrito no art. 241-D ao estatuto, não abarcou a figura do adolescente como vítima de tal conduta criminosa. Em análise global do ordenamento jurídico pátrio, não se vislumbra qualquer tipo penal prevendo em seu preceito primário a conduta de aliciar ou assediar[1] adolescente, por meio de comunicação, para fins de prática de atos libidinosos.
Ao que parece, estamos diante do fenômeno da anomia legislativa, que ocorre em caso de ausência de norma regulamentadora de determinada situação fática. Nesse sentido é a doutrina de Lélio Braga Calhau (2021), para quem:
a anomia é uma situação social em que falta coesão e ordem, especialmente no tocante a normas e valores. Se as normas são definidas de forma ambígua, por exemplo, ou são implementadas de maneira causal e arbitrária; se uma calamidade como a guerra subverte o padrão habitual da vida social e cria uma situação em que se torna obscuro quais normais têm aplicação; ou se um sistema é organizado de tal forma que promove o isolamento e a autonomia do indivíduo a ponto das pessoas se identificarem muito mais com seus próprios interesses do que com os do grupo ou da comunidade como um todo − o resultado poderá ser a anomia, ou falta de normas.
Como saída jurídica para tal lapso legislativo, em um primeiro momento, poderíamos pensar em aplicar a norma descrita no art. 241-D do eca também ao adolescente vítima do crime, utilizando o instituto da analogia. Porém, deparamo-nos com grave entrave jurídico, sendo impossível a utilização da analogia in malam parten no direito penal pátrio. Como ressalta Cleber Masson (2013, p. 112), “analogia in malan partem é aquela pela qual aplica-se ao caso omisso uma lei maléfica ao réu, disciplinador de caso semelhante. Não é admitida, como já dito, em homenagem ao princípio da reserva legal”.
No mesmo sentido, a doutrina de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2015. p. 41) nos acrescenta que:
em face da omissão involuntária da lei, aplicamos norma que disciplina fato análogo. Ao contrário do que acontece no direito penal, no âmbito do qual a analogia não pode ser utilizada em prejuízo do réu, na esfera processual ela goza de ampla aplicação. Todavia deve-se interpretar com reservas a admissibilidade da analogia quando se trata da restrição cautelar da liberdade ou quando importe em flexibilização de garantias, o que seria intolerável à luz da Constituição Federal.
Já o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a analogia in malan partem, no rhc 57.544/SP, julgado em 6 de agosto de 2015, é no seguinte sentido:
No crime de dano, a inclusão da Caixa Econômica Federal na qualificadora relativa à conduta cometida contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista é analogia in malam partem, pois o Código Penal não faz menção a dano cometido contra empresa pública: “Ainda que com a previsão da forma qualificada do dano o legislador tenha pretendido proteger o patrimônio público de forma geral, e mesmo que a destruição ou a inutilização de bens de empresas públicas seja tão prejudicial quanto as cometidas em face das demais pessoas jurídicas mencionadas na normal penal incriminadora em exame, o certo é que, como visto, não se admite analogia in malam partem no Direito Penal, de modo que não é possível incluir a Caixa Econômica Federal no rol constante do dispositivo em apreço.
Em avanço das exposições e em nosso sentir também, as condutas de aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, o adolescente com o fim de com ele praticar ato libidinoso não se enquadra, em regra, nas subsunções do art. 216-B[2], do art. 218-A[3], do art. 218-B[4] e do art. 218-C[5], todos do Código Penal brasileiro. Repita-se: em regra, pois, a depender dos ingredientes fáticos, pode ser que os tipos penais citados se ajustem na tipificação do caso concreto.
Isso posto, de maneira a evitar a impunidade dessa conduta grave que na maioria das vezes deixa marcas psicológicas irreparáveis em suas vítimas adolescentes, a solução legal vislumbrada para enquadrar a prática do crime de aliciar e assediar adolescente fazendo uso dos meios de comunicação para prática de atos libidinosos seria uma alteração legislativa no art. 241-D do eca, fazendo incluir o termo “adolescente” ao preceito primário da referida norma. Em outras palavras, apenas por lege ferenda poderia ser corrigida essa falha legislativa.
Caso contrário, tal conduta praticada em desfavor daqueles que têm entre 12 anos completos e 18 incompletos (adolescente) de idade seria atípica, trazendo enorme prejuízo à proteção a ser despendida pelo Estado e, principalmente, às vítimas, ao verem criminosos dessa jaez livres e impunes, o que é de todo inaceitável.
REFERÊNCIAS
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 4. ed. rev., ampl. e atual. Niterói (RJ): Impetus, 2021.
MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado – Parte Geral. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo Método, 2013. v. 1.
TÁVORA,
Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues.Curso de direito processual penal. Salvador, Juspodivm, 2015.
Assédio tecnológico de adolescente para ato libidinoso/tribuna livre, 1
CLÁUDIO ÁLVARES SANT’ANA: Assédio tecnológico de adolescente para ato libidinoso/tribuna livre, 1
JOAQUIM LEITÃO JÚNIOR: Assédio tecnológico de adolescente para ato
libidinoso/tribuna livre, 1
NOTAS
[1] Além das condutas de instigar ou constranger.
[2] Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: (Incluído pela Lei 13.772, de 2018)
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo. (Incluído pela Lei 13.772, de 2018)
[3] Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
[4] Art. 218-B. Submeter, induzir
ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18
(dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a
abandone:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§ 1 º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
§ 2 º Incorre nas mesmas penas:
I – quem pratica conjunção carnal ou outro ato
libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na
situação descrita no caput deste artigo;
II – o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem
as práticas referidas no caput deste artigo.
§3 º Na hipótese do inciso II do § 2 º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
[5] Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
Art. 218-C.Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
Aumento de pena (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
Exclusão de ilicitude (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).
§2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei 13.718, de 2018).