Alexandre Knopfholz MESTRE EM DIREITO PELO UNICURITIBA
Gustavo Britta Scandelari DOUTOR EM DIREITO PELA UFPR
Rodrigo Ribeiro ADVOGADO
É certo que as operações anticorrupção dos últimos anos foram fundamentais à marcha evolutiva da legislação, independente da torcida de um lado ou de outro
Em 3 de fevereiro de 2022 completou-se o primeiro ano da tímida nota oficial do Ministério Público Federal que divulgou a dissolução da força-tarefa da operação Lava-Jato no Paraná. A equipe fora criada no primeiro semestre de 2014 no intuito de desbaratar complexos esquemas delituosos, políticos e econômicos, pois, como já advertia Fiodór Dostoiévski no século 10, “nas classes superiores, a criminalidade vai numa progressão de alguma forma paralela”. Assim, a organização ministerial deveria – como sempre – estar atenta às constantes metamorfoses da luxuosa delinquência, e claro, preparada para enfrentá-la de forma obstinada.
Para muitos espectadores e comentaristas – dentre os quais operadores do direito, jornalistas, literatos, filósofos, ou simplesmente indivíduos utilizando-se da liberdade de expressão e do espaço virtual como a Ágora contemporânea – o fim melancólico do colegiado de procuradores nos moldes até então vigentes representou apenas o impacto final da “queda livre” da maior operação anticorrupção existente no país. No entanto, as atribuições relacionadas à Lava-Jato foram incorporadas pelo denominado Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (gaeco), assegurando a continuidade dos trabalhos, ainda que em menor intensidade (considerando-se a enxuta composição dos membros ministeriais designados para esse fim e o acúmulo de responsabilidades diante da atuação concomitante em casos diversos). Ao longo do período lava- -jatista, duas características sempre estiveram de mãos dadas em todas as fases da referida operação: as exponenciais e irredutíveis adversidades políticas a cada novidade das linhas investigatórias; e as ações penais, potencializadas pelo entusiasmo dos meios de comunicação em encandecer tal sentimento de antagonismo. Esse cenário alvoroçado ainda permanece irradiando seus efeitos, e é responsável por turvar vários outros aspectos interessantes ligados ao principal personagem desse notável recorte temporal: o direito penal.
O foco dos embates a respeito da Lava-Jato redundou (e ainda redunda), frequentemente, na incitação da peleja entre figuras do panorama político, ou ainda, em proposições dicotômicas: questionamentos sobre a (in)sufi ciência de acervo probatório; (in)existência de nulidades processuais-penais; condenações e/ou absolvições acertadas ou equivocadas; entre outras. Enfim, o escopo dos debates afunila a situações específicas que se traduzem, quando muito, em rarefeitas contribuições sociais, consistindo, como regra, em completo vazio de informação e utilidade.
Em contrapartida, existem diversas constatações, positivas e negativas, que fogem à curva desse modo reducionista de pensamento que, não raras vezes, são relegadas ao segundo plano, não obstante serem de extrema relevância. O objetivo do presente artigo é ressaltá-las.
É certo que os aprendizados ou lições decorrentes da Lava- -Jato foram fundamentais à marcha evolutiva do direito penal moderno, constatação que independe de qual lado da arquibancada se encontre, sobrelevando a necessidade de estudo e aprimoramento, em atenção às finalidades de prevenção, investigação e persecução de crimes.
Como afirmado, embora existam proclamações que anunciem, em firme tom de voz, a derrocada da referida operação, a verdade é que ela está longe de ser considerada um fracasso. Analisando-se o cenário por múltiplos prismas, é perfeitamente possível denotar que nada é mais equivocado do que tal afirmativa.
A compreensão desse ponto passa, de antemão, pela evidente impossibilidade de ignorar o árduo trabalho de delegados de polícia, membros do Ministério Público, advogados, professores, órgãos de imprensa, organizações não governamentais, entre outros que, com iniciativas diversas, dentro dos seus respectivos contextos, denunciam crimes contra a administração pública e revelam o modo de agir de organizações criminosas instaladas nos órgãos da república, o que, por si só, não deixa dúvidas de que não foi uma investida desafortunada. Tanto é que o ímpeto inicial das autoridades, de forma paulatina se arrefecendo junto ao definhamento da operação, foi significativo para o desmonte ou, no mínimo, na estagnação do combate à corrupção no cenário brasileiro posteriormente.
Além disso, a contundente utilização da justiça negocial se mostrou como alternativa eficaz em contraponto à ideia do massivo litígio. Muitas empresas envolvidas nos esquemas ilícitos foram induzidas a criar vários mecanismos de compliance, programas anticorrupção, ao passo que outras tantas, voluntariamente, compreenderam a necessidade de virar a chave para uma cultura organizacional voltada à mitigação de riscos, reforçando a lisura, ética e integridade corporativa. A Petrobras – principal vítima dos criminosos – em ativa participação processual, recuperou vultosa quantia monetária, algo nunca antes visto como resultado de ações penais. A otimização da estrutura e organização dos órgãos públicos permitiu reduzir o descompasso em relação ao avanço das tecnologias utilizadas para fins ilícitos, isto é, todos exemplos de implicações perenes, que não podem ser simplesmente ignoradas ou taxadas como uma derrota acachapante.
Quer queira, quer não, as experiências vivenciadas pela Lava-Jato serão, invariavelmente e por muito tempo, pontos de partida que balizarão as digressões sobre matéria criminal. Por isso, compreende-se pela necessidade de exaltar determinadas questões de debate – que são reflexos emergidos da operação ou que a contar dela passaram a ter maior relevância – levando-se em conta os rumos futuros para os quais o direito penal aponta.
1 ARREFECIMENTO DO COMBATE À CORRUPÇÃO
A primeira constatação é preocupante: o pós-Lava-Jato apresenta-se como um momento de inegável arrefecimento do combate à corrupção no país. O gigantesco esquema contra a maior empresa estatal brasileira, a Petrobras, contabilizou centenas de ações penais, recursos, colaborações premiadas e procedimentos diversos que se traduziram em uma das maiores iniciativas de repressão à corrupção e à lavagem de dinheiro do Brasil (e, possivelmente, do mundo).
Todavia, com olhos voltados a estatísticas ulteriores aos tempos áureos da Lava-Jato, verifica-se que não tem havido o mesmo ânimo de outrora no combate à corrupção. É claro que seria simplista reduzir o declínio de dados numéricos à mera contenção da referida operação, mas, por outro lado, também seria ingenuidade afirmar que ela não foi um dos principais fatores – senão o principal – para o desaceleramento da luta contra a criminalidade atual.
Conforme relatado em artigo publicado na Gazeta do Povo (11 de fevereiro de 2022), no Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (ccc) divulgado em 2021 pela America’s Society/Council of the America’s (as/coa), o país sofreu a maior queda entre as 15 nações da América Latina analisadas. Em relatório da Transparência Internacional, divulgado no último mês de janeiro, o Brasil caiu posições no Índice de Percepção da Corrupção, ocupando, atualmente, a 96ª posição entre os 180 países avaliados. Significativa é a decisão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) de monitorar o Brasil na luta diante da corrupção, em razão do que chamaram de “desmantelamento” de seu combate no país. Ou seja: seremos “supervisionados” porque transmitimos a ideia de que não damos conta, internamente, de processar e condenar corruptos.
Em reportagem publicada pelo Estadão (1º de fevereiro de 2022), noticiou-se que as prisões por corrupção chegaram ao mais baixo nível em 14 anos. Apenas para ter uma ideia, em comparação com 2020, o ano de 2021 apresentou uma redução de 44% entre prisões preventivas, temporárias e penas privativas de liberdade. Trata-se de estatística que não pode ser interpretada com pressa, sobretudo porque a prisão durante o processo é medida excepcional e tal informação, por si só, não é sufi ciente para cravar eventual enfraquecimento das instituições que são destinadas a repelir a corrupção. Mas não deixa de ser um dado objetivo e que deve ser considerado, ainda que em análise conjunta a outras referências.
Não se pode perder de vista, a título complementar, que a abrupta e considerável baixa nos índices de levantamento citados muito se deve, também, ao advento da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19), que substituiu a obsoleta Lei 4.898/65. O receio das autoridades ante uma legislação extravagante recheada de tipos penais destinados a agentes públicos, com uma técnica de tipificação que não transpassa tanta segurança (com vários conceitos indeterminados, ou que demandam completude do intérprete), também se revela fator determinante à esmaecida no vigor contra a criminalidade dessa natureza.
É preciso destacar que a díade corrupção e impunidade é complexa. Deve ser analisada sob os mais diferentes ângulos, social, jurídico, sistêmico, humano, de estrutura do Estado, entre outros. Contudo, jamais pode ser debatida sob o aspecto partidário. A corrupção é um fenômeno mais antigo e independente de partidos políticos ou de suas ideologias. Infelizmente, a forma de melhor reprimir esse mal tem ocupado muito menos os foros públicos de debate do que temas como “quem roubou mais” ou “quem meteu a mão antes” – o que nos remete a mencionada teimosia em deixar fora da esfera de prioridades panoramas essenciais que merecem real atenção e efetivo desenvolvimento.
Assim, a conclusão a que se chega, a propósito do primeiro sintoma, na era pós-Lava-Jato consiste, de um lado, na redução da intensidade no combate à corrupção e, de outro, certa desreferencialização na escolha de assuntos úteis sobre o assunto, os quais abordem o que realmente seja digno de aperfeiçoamento pelas entidades acadêmicas, juristas, operadores do direito e sociedade em geral.
2 A JUSTIÇA NEGOCIAL OU CONSENSUAL
O sistema criminal brasileiro, por muito tempo, não ofereceu saída à maciça litigiosidade, mesmo diante de “centenas de milhares de situações que poderiam ser rapidamente encerradas de forma satisfatória para as partes”1 , ou seja, a demanda mais frequente para a atuação da advocacia foi a realização de defesa em juízo contra acusações formuladas pelo Ministério Público. No entanto, o selo da obrigatoriedade da ação penal, que encabeçava o conhecido princípio nec delicta maneant impunita (nenhum crime deve ficar impune) foi perdendo espaço. A busca por alternativas à lide tomou corpo, tornando-se de uma realidade hoje já consolidada, com o estabelecimento de “condições de dar, de fazer ou de não fazer que, embora não constituindo penas criminais típicas, restringem a liberdade ou afetam o patrimônio ou outros direitos do autor do fato ou do réu”2.
Embora as práticas de despenalização tenham se tornado populares com os institutos da conciliação, transação penal e suspensão condicional após o advento da Lei 9.099/95, suas aplicações ficaram restritas aos delitos ou contravenções de baixa reprovabilidade, e essa redução de abrangência a hipóteses seletas não alcançou devidamente a criminalidade empresarial, econômica ou moderna, muito mais graves do que aquelas infrações amenas.
Na sequência, apesar de algumas nuances da colaboração premiada já aparecerem em legislações esparsas antes mesmo da Lei dos Juizados Especiais – a exemplo da Lei de Crimes Hediondos (art. 8º, parágrafo único) –, somente com o advento da denominada Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13) houve um tratamento mais acurado a respeito da matéria, definindo-se a natureza de negócio jurídico processual, além de trazer textualmente requisitos e demais diretrizes correlatas, saindo da quase completa abstração anterior.
A Lava-Jato, que veio à tona de forma avassaladora poucos meses após a vigência da referida disposição, influenciou em muito o pragmatismo do texto legal. Diante do avanço da engenhosidade delituosa, o amadurecimento do instituto da colaboração premiada foi notório, consubstanciando-se como meio de obtenção de prova fundamental à longínqua duração das dezenas de fases investigatórias/persecutórias.
A aceitação de que o poder público não teria o mesmo sucesso na obtenção de provas, identificação de coautores e partícipes, decretação de prisões, recuperação de ativos, e demais medidas cautelares e preparatórias imprescindíveis, sem o auxílio de indivíduos intimamente ligados à intrincada empreitada criminosa da atualidade, ou que dela tivessem informações significativas a serem repassadas às autoridades, fez com que a justiça negocial passasse de um olhar de desaprovação para uma forma satisfatória de abrandar a ineficácia estatal.
A vantagem não é só no plano da eficiência, mas também do financeiro. Segundo números do Conselho Nacional de Justiça (cnj), entre o período de 2017 e 2020, as despesas totais com o Poder Judiciário nacional superaram a casa dos R$ 100 bilhões em cada ano. A última pesquisa, por exemplo, demonstra que 2020 encerrou com 62,4 milhões de processos em andamento, sem perspectiva clara de solução definitiva. Por exemplo, em primeira instância a Justiça Estadual tem maior representatividade de litígios de natureza geral no Poder Judiciário, com 65,6% da demanda, ao passo que na área criminal, especificamente, essa representatividade aumenta para 91,1% (cnj, Justiça em Números, p. 75, 102; 214).
A inflada existência de processos judiciais em trâmite, extremamente onerosa aos cofres públicos, é fator preponderante para que haja mobilização para reduzir seu quantitativo. O aumento da efetividade e da celeridade processual, ao lado da redução de gastos, são as molas propulsoras da justiça negocial.
O crédito de resolver problemas de maneira consensual fomentou, nos últimos anos, o desenvolvimento de outro instituto: o acordo de não persecução penal (anpp). Antes mesmo da existência de uma lei ordinária disciplinando a matéria, o Conselho Nacional do Ministério Público já previa, no art. 18 da Resolução 181/17, a possibilidade de propositura de um acordo para que o investigado, caso assim lhe aprouvesse e, claro, cumpridos determinados requisitos, não precisasse suportar os malefícios de responder a uma demanda de natureza criminal.
Posteriormente, com a já habitual aplicação da mencionada resolução a casos concretos, o denominado Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), finalmente, estabeleceu a previsão do que se rotulou nos primórdios das digressões sobre o tema, de “plea bargain à brasileira”. Hoje, segundo René Ariel Dotti e Gustavo Britta Scandelari (online, s.d.), tornou-se uma solução incorporada pelo sistema jurídico pátrio aos delitos de médio potencial ofensivo o “mecanismo pelo qual o acusado pode, logo no início das apurações pré-processuais, reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão de seu direito a um processo e ao consequente julgamento judicial de mérito para receber, desde logo, uma pena”, apesar de ainda demandar a lapidação em algumas arestas (cuja discussão foge ao âmbito do presente texto).
Portanto, diante do expressivo acervo processual em matéria criminal que sobrecarrega o Poder Judiciário (especialmente em primeiro grau), o próximo sintoma tendente do direito penal pós-Lava-Jato, devidamente internalizado no âmago dos sujeitos processuais, é a primazia de resolução de conflitos e atendimento a interesses satisfatoriamente, sem a dependência dos desgastes e onerosidade oriundos de processos judiciais que se arrastam por vários anos.
3 COMPLIANCE
O envolvimento de empresas e sua adesão a negócios jurídicos com autoridades públicas voltados à reparação do dano e à instituição ou otimização de mecanismos de prevenção de ilícitos é o que interessa. No âmbito da Lava-Jato, uma das companhias ligadas a práticas espúrias foi a Odebrecht, que mantinha um “departamento inteiro […] dedicado a administrar propinas”3.
Em 1º de dezembro de 2016, a empresa publicou comunicado com o título “Desculpe, a Odebrecht errou”. Nele, além de reconhecer que “participou de práticas impróprias em sua atividade empresarial”, afirmou adotar, a contar de então, compromisso com uma “atuação ética, íntegra e transparente”. Para tanto, várias medidas seriam tomadas, entre elas a de “incorporar nos programas de ação dos integrantes avaliação de desempenho no cumprimento do sistema de conformidade”4. A empresa realizou, ainda, acordo de leniência decorrentes de suas atividades ilícitas, em que cerca de R$ 1,4 bilhão foram recuperados pelas autoridades5.
Outra empresa foi a Andrade Gutierrez, que se valia de lobby para viabilizar pagamento de propina a políticos6 e também divulgou “pedido de desculpas ao povo brasileiro”, comprometendo-se a reparar danos. Afirmou, ainda, que a operação Lava-Jato “poderá servir como um catalisador para profundas mudanças culturais, que transformem o modo de fazer negócios no país”. Segundo reportagem, a empresa declarou que implantaria um “moderno modelo de compliance [transparência], baseado em um rígido Código de Ética e Conduta”7.
Em seu sítio eletrônico, a Andrade Gutierrez comunicou o acordo de leniência que assinou com a agu e a cgu, assumindo responsabilidade de ressarcir R$ 1,49 bilhão. Afirmou, também, que:
Adotou as melhores iniciativas de compliance em suas operações, visando garantir a ética, lisura e a transparência em suas relações empresariais, seja com clientes ou fornecedores, assumindo ainda o compromisso de rechaçar tudo aquilo que não seguir os rígidos padrões éticos adotados pela companhia.8
A oas, por sua vez, assinou acordo de leniência, revelando
a participação de quase 50 empresas do setor, em fraudes em licitações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). […] O grupo principal seria formado por oito grandes empreiteiras. Além da OAS, Andrade Gutierrez, Carioca Engenharia, Camargo Corrêa, Galvão Engenharia, Mendes Júnior, Odebrecht e Queiroz Galvão.9
Como resultado da operação, a empresa adotou procedimentos relativos a mecanismos de prevenção, como: criação de um programa de compliance com participação da alta direção e de um canal para denúncias com garantia de anonimato; criação de um conselho de administração, que recebe diretamente as avaliações do comitê de compliance; criação de um código de conduta e de um comitê de compliance com poder de veto em decisões da diretoria executiva. “O comitê não está subordinado à diretoria Executiva, o que lhe garante independência e autonomia”, informou a empresa10.
Os resultados favoráveis ocorreram em razão não apenas da atuação ostensiva de vários órgãos públicos de fiscalização, controle e repressão, mas também de leis que eram novidades à época e surpreenderam a sociedade e os investigados com sua eficácia. Tratam-se, essencialmente, da Lei 12.846/13, que disciplinou o acordo de leniência e previu penas rigorosas para empresas envolvidas com corrupção, além de ter estabelecido a possibilidade de mitigação de sanções pela existência prévia de mecanismos de integridade, assim como a mencionada Lei 12.850/13, que tratou em detalhes do acordo de colaboração premiada e da repressão de organizações criminosas11.
Essa realidade motivou análises críticas como a de Rodrigo Chemim, para quem “o futuro da democracia brasileira pós- -Lava-Jato, portanto, depende […] da criação de mecanismos efetivos de controle”12. Hoje, há naturais interrogações sobre a temática, como a questão da efetividade quando o programa desses moldes for criado por pura formalidade, a superficialidade de leis existentes, ou ainda, a inexistência de normativa que obrigue a adoção de normas internas de prevenção.
O que acalenta é que a complicada fase de convencimento da sociedade sobre a indispensabilidade da adoção de programa de compliance não foi paralisada. Pelo contrário, embora o processo de maturação seja delongado, a seta aponta para um só lado: o Brasil pós- -Lava-Jato, no âmbito corporativo, é pautado pela ideia de contenção de riscos, e o que basta é aprimorá-la.
4 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
No atual panorama legislativo e jurisprudencial, é possível responsabilizar criminalmente uma pessoa jurídica apenas pelas condutas tipificadas na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Sem a pretensão de verticalizar nas reviravoltas de entendimentos no âmbito dos tribunais superiores (a necessidade – ou não – de dupla imputação, à impossibilidade da noção de culpabilidade e privação de liberdade ser transplantada a sujeitos que não sejam pessoas físicas, e demais controvérsias que permeiam o tema), é evidente que as aplicações de sanções criminais a entes coletivos têm deixado a desejar no Brasil.
Isso não só em razão da citada disposição legal enunciar, genericamente, um diminuto rol de penas aplicáveis, mas, sobretudo, pela sua ínfima ou quase nula presença dentro do mar de condutas delituosas que notadamente ocorrem no seio empresarial, que vão muito além da prática de crimes ambientais.
Por outro lado, após a Lei Anticorrupção a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública deu uma absoluta guinada – talvez porque aquela premente vontade de acelerar o passo e tornar factível uma efetiva responsabilidade penal de pessoas jurídicas tenha se reservado mais aos estudos acadêmicos no solo nacional.
Em vista do quase simultâneo nascedouro da leniência e da operação Lava-Jato, conforme mencionado, várias empresas renomadas firmaram acordos, que, juntos, somaram valores estratosféricos (na casa de bilhões de reais) a serem devolvidos aos cofres públicos, experiência comprovadora de que a regulamentação legal foi uma tacada bem- -sucedida.
Voltando à esfera criminal, não se pode olvidar, todavia, que as penalidades decorrentes da implicação de uma pessoa jurídica não precisam, necessária ou exclusivamente, corresponder a um ônus pecuniário (para o que os pactos de leniência têm se mostrado idôneos). Para o controle social da criminalidade, a esfera penal pode se valer de outros mecanismos complementares já difundidos no estrangeiro.
Apenas a título exemplificativo, o método shaming (que significa, grosso modo, envergonhar um condenado e alardear ao público sua condenação)13 revela-se extremamente amoldável à realidade vivenciada, principalmente diante do dinamismo das redes sociais, que encurtam o tempo e o espaço.
Sendo assim, é completamente possível que haja promulgação de leis que explorem o mecanismo, e a corrida para a censura dos atos ilícitos ganharia um forte participante no combate sistêmico à criminalidade. Por tais razões, embora a percepção seja de que o assunto tenha de certa forma esmorecido, em comparação aos anos anteriores, deposita- -se a esperança de que retome ao centro das pautas das autoridades públicas.
5 MAIOR PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA
Pouco se fala da vítima no Código de Processo Penal. É de Walter Nunes da Silva Júnior a advertência de que “um dos maiores desafios do processo penal reside em sua legitimidade, especialmente em relação à vítima, que é, ainda hoje, a grande esquecida do sistema criminal”14.
Com efeito, durante muito tempo ela foi escanteada no processo penal. Em regra, as ações penais são públicas e, portanto, de titularidade do Estado. O ofendido, então, aparece como mero coadjuvante. Ainda que tal realidade não tenha sido substancialmente alterada, é certo que nas últimas décadas – quiçá por influência do progresso dos ideais da referida justiça restaurativa – aumentou a preocupação com a vítima de crimes, objetivando-se “resgatar a dignidade do tema para muito além de expressões da tragédia e do sofrimento”15; afinal, o principal interessado é o ofendido, pois a ele são mais sensíveis os resultados da conduta lesiva.
A figura da assistência de acusação surge, então, tanto para assegurar o interesse do ofendido na efetivação da justiça – aplicação da lei penal – quanto para garantir os desdobramentos de outra natureza que dela decorrem – como a recomposição do dano ex delicto –, os quais guardam íntima relação com a denominação “vítima”, sob a óptica do ordenamento jurídico brasileiro.
Ser assistente de acusação é, portanto, e em síntese, um direito assegurado a quem sofreu a ofensividade, cujo exercício é facultativo, oportunizando-se sua intervenção no processo na existente relação processual entre Ministério Público e acusado. Assim é a ocupação do assistente em relação ao parquet: uma força supletiva à acusação, com atribuições de poderes taxativos, conforme a redação do art. 271, do cpp.
O contexto da operação Lava-Jato foi a amostra-modelo de que a vítima não precisa permanecer somente aguardando o resultado definitivo da demanda processual, que lhe é de inconteste interesse. A Petrobras, devidamente habilitada como assistente de acusação, atuou, por meio de seus representantes, de forma proativa em diversas ações penais.
Foram incontáveis petições/ requerimentos, minutas com prestação de informações solicitadas pelos participantes processuais, audiências, recursos, enfim, tudo com este uníssono objetivo: contribuir efetivamente com as autoridades visando a melhor aplicar a lei penal, de modo a consagrar a Justiça e, claro, lutando pelo seu legítimo direito de resgatar tudo aquilo que foi perdido, ou aproximar-se ao máximo de seu statu quo, antes da robusta atuação dos criminosos. Não à toa, a intervenção implacável da companhia assegurou a recuperação de mais de R$ 6 bilhões, entre acordos de leniência e de colaboração premiada16.
Assim, outro sintoma aferível pós-Lava-Jato é a demonstração de que a vítima, atualmente, não é um participante “indireto” da demanda, assistindo à evolução dos autos de maneira longínqua. Em verdade, encontra-se na linha de frente da ação penal, para lutar de forma assente pela justiça, e por conseguinte, seu restabelecimento, seja de ordem moral, seja de ordem financeira.
CONCLUSÃO
Pelo presente artigo buscou-se, ainda que en passant, demonstrar que o direito penal, em sua caminhada ao futuro, não poderá simplesmente fazer vistas grossas aos reflexos indeléveis da operação Lava-Jato. O primeiro ponto abordado teve por finalidade demonstrar que, estatisticamente, o combate à corrupção tem desacelerado, e o definhamento da operação foi, sem sombra de dúvidas, significativo para tanto. Por outro lado, o debate sobre o tema tem sido tímido e desreferencializado.
Em segundo lugar, a denominada justiça negocial ou consensual consistiu em fator preponderante para o sucesso da operação e para os rumos de um direito penal que também sirva à resolução não adversarial.
Na sequência, um dos sintomas absolutamente aferíveis na era pós-Lava-Jato residiu no desenvolvimento do instituto do compliance. Os programas de contenção de riscos, integridade, lisura, ética e afins foram internalizados pelo mundo corporativo, não obstante mereçam, ainda, profundo aprimoramento. A propósito da responsabilidade penal da pessoa jurídica, advertiu-se que, embora o assunto tenha perdido espaço na pauta das autoridades e se reservado mais aos estudos acadêmicos, tem-se a esperança que a necessidade de responsabilização criminal de entes coletivos retome ao centro de discussões no Brasil.
Por fim, a vítima tem se demonstrado figura cada vez mais indispensável à efetivação do interesse público de aplicação da lei penal. A sua atuação proativa como sujeito processual é fundamental para recuperar os danos sofridos.
NOTAS
1. DOTTI, René Ariel; SCANDELARI, Gustavo Britta. Acordos de não persecução e de aplicação imediata de pena: o plea bargain brasileiro. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Boletim – 317 – Esp. Pac. Anticrime. Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_ artigo/6312-Acordos-de-nao-persecucao-e-de- -aplicacao-imediata-de-pena-o-plea-bargain- -brasileiro. Acesso em: 4 mar. 2022.
2. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 939.
3. VIEIRA, Geraldo da Silva. Direito penal econômico. 2. ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018, p. 247-248.
4. “DESCULPE, a Odebrecht errou”, anuncia empreiteira. Migalhas, 2 dez. 2016. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/249920/desculpe–a-odebrecht-errou– –anuncia-empreiteira. Acesso em: 17 mar. 2022.
5. SUÍÇA já devolveu ao Brasil R$ 1,4 bilhão relacionado a casos da Lava Jato. Folha de S. Paulo, 9 abr. 2019. Disponível em: https://www1. folha.uol.com.br/poder/2019/04/suica-devolve- -ao-brasil-r-14-bilhao-relacionado-a-casos-da- -lava-jato.shtml. Acesso em: 4 mar. 2022.
6. A propina é a moeda que paga a relação com lobistas no Brasil, essa é a rubrica orçamentária a encarecer os serviços e a sonegar saúde, segurança, educação e infraestrutura a nossa sociedade” (TUMA JR., Romeu; TOGNOLLI, Claudio. Assassinato de reputações II: muito além da Lava Jato. 2. ed. São Paulo: Matrix, 2016, p. 241-245).
7. ANDRADE Gutierrez divulga pedido de desculpas por ilegalidades em obras. Folha de S. Paulo, 8 maio 2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ poder/2016/05/1769144-andrade-gutierrez- -divulgapedido-de-desculpas-por-ilegalidades. shtml. Acesso em: 4 mar. 2022.
8. AG assina acordo de leniência com AGU e CGU. Andrade Gutierrez, 19 dez. 2018. Disponível em: http://www.andradegutierrez.com.br/ Imprensa.aspx#. Acesso em: 4 mar. 2022.
9. RODRIGUES, Eduardo. Em leniência, OAS admite cartel com 47 empresas. O Estado de S. Paulo, 20 mar. 2019. Disponível em: https:// economia.estadao.com.br/notícias/geral, em- -leniencia-oas-admite-cartel-com-47-empresas,70002761654. Acesso em: 4 mar. 2022.
10. ALVARENGA, Darlan; MELO, Luísa. Para virar a página, empresas da Lava Jato investem em planos anticorrupção. G1, 9 jul. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/para-virar-apagina-empresas-da- -lava-jato-investem-em-planos-anticorrupcao. ghtml. Acesso em: 4 mar. 2022.
11. É digno de nota o exemplo da empresa JBS, cujos dirigentes chegaram a firmar acordos com as autoridades no âmbito da Operação Lava Jato, mas, posteriormente, foram apontadas ilicitudes que teriam sido praticadas pelos próprios empresários durante as tratativas para que os acordos fossem firmados (JBS: Histórico de negócios desmonta versão de insider trading. Consultor Jurídico, 14 jan. 2019. Disponível em: https://www.conjur. com.br/2019-jan-14/jbs-historico-negocios- -desmonta-versao-insider-trading. Acesso em: 4 mar. 2022; SALOMÃO, Karin. 2017, o ano em que a JBS abalou o país. Exame, 28 dez. 2017, Negócios. Disponível em: https://exame.com/ negocios/2017-o-ano-em-que-a-jbs-abalou-o- -pais/. Acesso em: 4 mar. 2022.
12. CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho. 2. ed. Porto Alegre: CDG, 2018, p. 243.
13. SCANDELARI, Gustavo Britta, POZZOBON, Roberson Henrique. Shaming como uma via para a sanção criminal de pessoas jurídicas no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 151, p. 75-114, jan., 2019.
14. SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma tópica do processo penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 53.
15. DOTTI, 2022, Op. cit., p. 175.
16. ULTRAPASSAMOS R$ 6 bilhões em recursos recuperados por meio de acordos de leniência e delações premiadas. Fatos e Dados, 29 jun. 2021. Disponível em: https://petrobras.com.br/ fatos-e-dados/ultrapassamos-r-6-bilhoes-em- -recursos-recuperados-por-meio-de-acordos- -de-leniencia-e-delacoes-premiadas.htm. Acesso em: 4 mar. 2022.
REFERÊNCIAS
AG assina acordo de leniência com AGU e CGU. Andrade Gutierrez, 19 dez. 2018. Disponível em: http://www.andradegutierrez.com.br/Imprensa.aspx#. Acesso em: 4 mar. 2022.
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CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho. 2. ed. Porto Alegre: CDG, 2018.
“DESCULPE, a Odebrecht errou”, anuncia empreiteira. Migalhas, 2 dez. 2016. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/249920/ desculpe–a-odebrecht-errou—anuncia-empreiteira. Acesso em: 17 mar. 2022.
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DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
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ULTRAPASSAMOS R$ 6 bilhões em recursos recuperados por meio de acordos de leniência e delações premiadas. Fatos e Dados, 29 jun. 2021. Disponível em: https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/ultrapassamos-r-6-bilhoes-em-recursos-recuperados-por-meio-de-acordos-de-leniencia-e-delacoes-premiadas.htm. Acesso em: 4 mar. 2022.
VIEIRA, Geraldo da Silva. Direito penal econômico. 2. ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018.
Alexandre Knopfholz.
Mestre em Direito pelo UniCuritiba (Centro Universitário Curitiba – 2012). Pós-Graduado
em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005). Professor de Processo Penal no UniCuritiba. Professor convidado em cursos de Pós-Graduação e de Extensão da Escola Superior de Advocacia da oab/pr (esa), da Universidade Positivo (up), da Universidade Tuiuti do Paraná (utp) e da Academia Brasileira de Direito Constitucional (abdconst). Parecerista/avaliador de artigos enviados para publicação em periódicos especializados. Associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (ibdpe). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (aidp). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (iap). Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da oab/pr (2010-2018). Advogado atuante na área criminal. E-mail: alexandre@dotti.adv.br.
Gustavo Britta Scandelari.
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (ufpr). Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (ufpr). Professor de Direito Penal na Graduação do UniCuritiba. Professor do Curso de Pós-Graduação em Law Enforcement, Compliance e Direito Penal da Universidade de Lisboa, da Pós-Graduação em Compliance e Governança Jurídica da fae Business School, da Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal abdconst, do UniCuritiba e de outros cursos de Pós-Graduação em Direito. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná (ufpr) em convênio com o Instituto de Criminologia e Política Criminal (icpc). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Unibrasil. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (up). Pesquisador integrante de Grupos de Estudos (cnpq) em Ciências Criminais.
Parecerista/avaliador de artigos enviados para publicação em periódicos especializados. Associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (ibdpe). Membro da Comissão de Compliance da oab/pr (2018), da Comissão de Estudos Sobre Compliance e Anticorrupção Empresarial da oab/pr (2019-2021) e vice-presidente da Comissão de Estudos Sobre Compliance e Anticorrupção Empresarial da oab/pr (2022-2024). Membro da Comissão da Advocacia Criminal da oab/pr (2010-2012; 2013-2015; 2016-2018). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (aidp). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (iap). Advogado atuante na área criminal.
E-mail: gustavo@dotti.adv.br
Rodrigo Ribeiro.
Especialista em Delitos Econômicos e Macrocriminalidade pela Escola da Magistratura Federal
do Paraná (esmafe/pr). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba). Advogado atuante na área criminal. E-mail: rodrigo@dottieadvogados.com.br.