Estelionato sentimental e a responsabilidade Civil

A intenção não é caracterizar o namoro como uma nova modalidade familiar, mas sim defender a responsabilidade civil que o relacionamento ocasiona. -- Por Egnaldo dos Santos Oliveira Advogado -- (Bonijuris #677 Ago/Set 2022)

Egnaldo dos Santos Oliveira Junior ADVOGADO

Se um dos namorados tiver uma conduta moralmente reprovável, configurando má-fé, pode a Justiça entender sua intenção de obter vantagem econômica

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu nova interpretação ao art. 226 da Constituição Federal de 1988 ao decidir que o rol de entidades familiares apresentado pelo dispositivo deve ser interpretado de forma abrangente, ou seja, as espécies de famílias descritas são apenas de caráter exemplificativo. Diante do princípio da pluralidade das entidades familiares, o direito de família brasileiro adota novos contornos, sendo lastreado pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, tendo como seu alicerce principal o afeto.

Na abordagem temática Famílias Contemporâneas: Interfaces e Conexões, onde este artigo se insere, verifica-se um contexto social em que há diversas novas modalidades de relacionamentos, com destaque para as relações de namoro, com o surgimento de um tema pouco discutido no campo da responsabilidade civil, o chamado “estelionato sentimental”.

As relações de namoro vêm causando diversos embates sociais, pautados em características bem peculiares, modalidade de relacionamento que pode ser definida como um compromisso firmado antes do noivado, casamento ou união estável, com a intenção de construir um futuro juntos.

É sabido que as relações de casamento e união estável são reguladas pelo Código Civil de 2002, com uma proteção de cunho econômica e patrimonial aos cônjuges ou companheiros. Destaque-se o crescente número das relações de namoro e toda sua importância nos âmbitos social, cultural e afetivo, comprovando a necessidade da proteção ao namorado que está de boa-fé na relação, perante aquele que falta com ela.

A intenção não é caracterizar as relações de namoro como uma nova modalidade familiar, mas sim defender a responsabilidade civil que esses tipos de relacionamento podem ensejar, já que ocorre estelionato sentimental sempre que um dos namorados age com dolo ou culpa, ferindo a espera patrimonial do seu par, tendo em vista que os namoros são pautados no afeto e no dever moral de fidelidade e zelo.

É normal que as relações sejam construídas e que possam acabar quando não dão certo. No entanto, é crescente o número de ações que vêm provocando o Judiciário para dirimir conflitos que surgem ao longo do namoro, situações que ao serem identificadas necessitam de uma resposta do direito, já que atua como instrumento que regula os fatos e valores da sociedade, defendendo a boa-fé objetiva nas relações de afeto.

  1. A CONSTRUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 recepcionou o princípio da pluralidade dos entes familiares como um novo norte ao direito de família, estabelecendo que as classificações trazidas no art. 226 da CR/88 (“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”), segundo a interpretação do Supremo Tribunal de Federal (STF), são um rol exemplificativo das entidades familiares, determinando o livre exercício do planejamento familiar.,

Além de novos conceitos estabelecidos pela lei maior, o Código Civil de 2002 trouxe mudanças significativas na estrutura familiar brasileira, em comparação com o diploma de 1916, transformações que sofrem influências diretas por meio dos costumes sociais, da construção de novos direitos e até de fatores econômicos. A evolução do direito de família pode ser visualizada em uma série temporal, tendo como ponto de partida a colonização do país.

Na colonização do Brasil os relacionamentos afetivos eram de caráter sexual, com intuito apenas de sanar a necessidade do homem, que nesse caso eram desbravadores portugueses envolvidos com indígenas e, posteriormente, com as africanas escravizadas. Mais tarde, a Igreja, na figura dos jesuítas, contrários às relações fora do casamento, começou a exercer influência para que as mulheres portuguesas viessem para o Brasil, dando origem às primeiras famílias oficiais e a uma organização patriarcal (Freyre, 1951).

O século 20 foi marcado por algumas características no instituto família. É de destaque a figura do pater famílias, ou seja, o poder doméstico estava sob o pai, era ele que detinha a capacidade para escolher o destino dos filhos, sempre pautada pelos fatores econômico e político, já que as relações se constituíam como uma maneira de preservação do patrimônio sob o seio da família. Nesse aspecto, Azevedo (1986, p. 7) ensina que:

O casamento interessava à solidariedade e à integridade dos grandes grupos de parentesco nos quais se apoiavam a ordem social, a economia, a política, e a própria realização pessoal dos indivíduos. As crônicas históricas, o folclore, a literatura de ficção, a documentação judiciária não deixa dúvidas a respeito, muito embora também registrem as resistências e as insubmissões que o amor romântico sempre ofereceu ao casamento arranjado pelos pais sem a anuência prévia dos futuros cônjuges.

Diante do poder exercido pelo patriarca da família, os recursos financeiros na escolha do cônjuge preponderavam sobre questões ligadas aos sentimentos, sendo excluídas a atração física, a paixão e o amor. Por muito tempo os sentimentos de homens e mulheres não foram levados em consideração para que ocorresse uma união, pois as relações eram pactuadas apenas por homens, que discutiam os valores dos dotes a serem pagos e se a mulher era honrada e honesta, o que equivalia à virgindade das mulheres solteiras, fatores não destinados aos homens.

A idade era um ponto relevante nesse contexto. De acordo com o direito romano e canônico, a idade do casamento no Brasil e Portugal para homens era a partir de 14 anos, e mulheres a partir de 12 anos. Duas situações eram comuns nessa época: a promessa de casamento de duas famílias, quando seus filhos atingissem a idade permitida; e a disparidade na idade entre o casamento de homens e mulheres, pois era permitido a homens mais velhos se casar com mulheres novas.

O Código Civil de 1916, apesar de instituir algumas características próprias às famílias, ainda possuía alguns resquícios do Brasil colônia: era patriarcal, tinha a figura do pai como chefe da família; hierarquizada, estabelecia diferenças entres os filhos quanto à origem, e as mulheres eram submissas aos homens; patrimonialista, tinha a característica de empresa produtiva, ou seja, o pagamento de dote era efetuado e visava ao acúmulo de riqueza na família; heterossexual, só era permitido o casamento entre homem e mulher; matrimonializada, previa o casamento como meio exclusivo de estabelecer uma união; e indissolúvel, não era permitido o divórcio, sendo influência direta da Igreja Católica (Jatobá, 2014).,

No fim do século 20 e início do século 21, o direito de família no Brasil ganhou novos contornos, quando teve início o comportamento de que as uniões amorosas não interessavam mais aos entes familiares, mas sim aos desejos dos indivíduos. Os fatores econômicos e a procriação foram sendo deixados de lado, e as relações amorosas começaram a simbolizar sexualidade, afeto e prazer.

Com o advento da Constituição de 1988, em que princípios norteadores enfocam a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a liberdade passaram a ser novas características no direito de família, trazidas também no atual Código Civil, estabelecendo uma pluralidade que possibilita constituir família com outros arranjos diversos do casamento, independentemente de sexo, permitindo a formação de uniões homoafetivas. Não há mais a caraterística da heterossexualidade, é igualitária, uma vez que não existe discriminação entre os filhos, e ocorre a divisão do poder familiar exercido no âmbito doméstico, com direitos e deveres iguais para ambas as partes. Também possibilitou a dissolução por meio do divórcio, e a família se tornou eudemonista com a perda do caráter patrimonialista, pois a família é constituída pelo afeto (Jatobá, 2014).

  1. Os diferentes tipos de relacionamentos

Com as mudanças de comportamento e as transformações inseridas na legislação brasileira, temos uma nova construção do conceito de atual de família, de modo que se chega ao seguinte questionamento:

Será que hoje em dia alguém consegue dizer o que é uma família normal? Depois que a Constituição trouxe o conceito de entidade familiar, reconhecendo não só a família constituída pelo casamento, mas também a união estável e a família monoparental – formada por um dos pais com seus filhos – não dá para falar em família, mas em famílias (Dias, 2008, p. 218).

Nessa construção observa-se o surgimento de novas modalidades de relacionamentos, os quais têm intuito de criar vínculos afetivos, mas não são classificados como modelos de família e podem gerar consequências jurídicas. Estamos diante de outras acepções de relacionamentos, realizados pelas novas gerações, pautados no afeto e, por isso, não deveriam trazer consequências jurídicas.

Outro fator que contribui para o surgimento desses novos tipos de relacionamentos é a situação conjugal da sociedade brasileira. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de um terço das uniões são consensuais, verificando-se uma redução no uso dos institutos do casamento civil e religioso, ao passo que há aumento no uso das uniões consensuais não institucionalizadas, conforme demonstra o Quadro 1, que analisa a situação das relações conjugais dos brasileiros nos períodos entre 2000 e 2010.

Outra oportuna observação acerca da nupcialidade no Brasil concerne ao crescente número dos divórcios. Com a promulgação da Lei 11.441/07, que passou a permitir que os divórcios possam ser requeridos por via administrativa, verifica-se que houve acesso mais rápido e prático à extinção do casamento, acarretando a redução do número de casados no país.

Com o crescimento dos números de divorciados e solteiros tem lugar o surgimento de novos modelos de relacionamentos, adotados, principalmente, pelas novas gerações. Estão na moda novos termos, como “ficar” e “pegar”, que se referem aos tipos de relacionamento em que há envolvimento e atração entre duas pessoas, porém essas situações têm como característica principal a liberdade, ou seja, não existe compromisso de fidelidade entre as partes.

Pegar, ficar e namorar são representações sociais de relacionamentos entre adolescentes. Os adolescentes definem “pegar” como um envolvimento espontâneo, não repetitivo, sair sem compromisso, em que predominam os interesses físico e sensual, um encontro de uma vez e ninguém se encontra mais. O “ficar” é atrelado a um relacionamento em que já existe mais intimidade, os envolvidos se conhecem, trocam telefones, mantêm conversas, encontram-se com frequência, tornando uma certa regularidade capaz de desencadear um namoro. Em ambas as relações podem ocorrer – ou não – relações sexuais, a depender de como os sujeitos envolvidos encaram a situação (Oliveira; Gomes; Marques; Thiengo, 2007).

O Superior Tribunal de Justiça entende que “a ficada” seja um relacionamento fugaz, com lapso temporal curto, amoroso. Como dito, os novos tipos de relacionamento não podem ser considerados modelos de famílias, mas podem produzir efeitos jurídicos, como se observa na posição da Terceira Turma do STJ ao julgar a ação de investigação de paternidade, com exame pericial (teste de DNA), no REsp 557.365/ro, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 7 de abril de 2005:

Recusa. Inversão do ônus da prova. Relacionamento amoroso e relacionamento casual. Paternidade reconhecida. A recusa do investigado em se submeter ao teste de DNA implica a inversão do ônus da prova e consequente presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor. Verificada a recusa, o reconhecimento da paternidade decorrerá de outras provas, estas suficientes a demonstrar ou a existência de relacionamento amoroso à época da concepção ou, ao menos, a existência de relacionamento casual, hábito hodierno que parte do simples “ficar”, relação fugaz, de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual. Recurso especial provido.

O namoro é um tipo de relacionamento em que o compromisso e a fidelidade já são presentes entre as partes, relação que também compreende, em regra, a oficialidade frente à família e ao meio social em que os envolvidos convivem, instituto objeto deste artigo.

O noivado apresenta-se como modalidade de relacionamento em que já é possível a produção de efeitos jurídicos mais aparentes, pois é entendido como compromisso para o enlace, uma fase que antecede o matrimônio, constituindo uma promessa para o casamento.

Merece destaque o fato de que o término injustificado do noivado por um dos envolvidos pode acarretar responsabilidade civil, entendida pela doutrina como a responsabilidade extracontratual constante no art. 186 do Código Civil.

Já o casamento é ato solene em razão de possuir característica de contrato no direito de família, instituto regulado pelo art. 1.511 do Código Civil, o qual prescreve que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Diante dessa determinação, o casamento se apresenta como um ato jurídico, mediante o qual duas pessoas constituem uma família. Note-se que muitos doutrinadores brasileiros adotam a visão de casamento como uma união entre pessoas de sexos diferentes, ou entre homem e mulher, visão que não se aplica mais ao direito civil contemporâneo, em que duas pessoas de mesmo sexo podem constituir uma família, segundo as resoluções e interpretações do STF e do STJ.

A união estável é conceituada como uma relação afetiva de convivência pública e douradora entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com a intenção de constituir família. É um instituto também regulado pelo Código Civil (art. 1.723 e seguintes), em que devem constar os seguintes elementos: publicidade, convivência continua e duradora e intenção de constituir família (Gagliano; Pamplona Filho, 2014, p. 424).

  1. 2 O namoro na atualidade e sua importância social

O direito não se resume apenas às aplicações dos dispositivos normativos vigentes. Os institutos do casamento e da união estável são regidos pelo Código Civil e pelas inovações consagradas na Constituição Federal de 1988, por exemplo, o princípio da pluralidade das entidades familiares. Contudo, o mencionado princípio traz avanços no tocante ao direito de família sem acolher as relações de namoro como uma espécie de família, pois sua natureza consiste em um contrato em que as partes prezam pelo afeto e pela fidelidade.

O namoro é uma relação de praxe na sociedade brasileira, apresentando-se como um costume moral, um relacionamento que não possui vínculo jurídico, econômico ou patrimonial, mas assemelha-se a um contrato realizado entre as partes. Diante dos novos rumos e da importância das relações de namoro na sociedade, busca-se uma ferramenta para dirimir os embates que estão surgindo. O direito apresenta- -se como instrumento para regular as ações humanas, não apenas tendo um caráter normativo, mas também abrangendo os fatos e valores. Para Miguel Reale (1994, p. 118):

Se perguntasse a Kelsen o que é Direito, ele responderia: Direito é norma jurídica e não é nada mais do que norma. Muito bem, preferi dizer: não, a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez em meu livro Fundamentos do Direito eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é só economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos de Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, fato e é valor.

As relações de namoro são fatos sociais que produzem resultados. Assim, a condição de estar envolvido em um relacionamento de namoro causa um dever moral, pautado em condutas de fidelidade e respeito, considerando que há envolvimento afetivo e a perspectiva de construir um futuro juntos:

Mais sério do que simples encontro casual, o namoro não se notabiliza simplesmente pelo envolvimento sexual, mas também pelo comprometimento afetivo. Tal aspecto, no entanto, não serve para conferir-lhe roupagem jurídica familiar, dada a sua tessitura instável, mais pertinente a Moral do que propriamente ao Direito (Gagliano; Pamplona Filho, 2014, p. 135).

Atualmente, o namoro é uma relação afetiva pautada no compromisso de fidelidade entre os namorados, uma característica peculiar existente relacionada ao “amor confluente”, que consiste na permissão de troca de intimidades, um amor igualitário em que se pode discutir a sexualidade, culminando na satisfação do próprio relacionamento, descrito como uma “relação pura”, havendo confiança e satisfação recíproca, estabelecendo um elo com os princípios da dignidade da pessoa humana, o da igualdade e o da liberdade (Giddens, 1993).

Esses parâmetros constantes no namoro abrem a possibilidade do término do relacionamento caso um dos parceiros sinta que não está mais satisfeito ou motivado com a relação, podendo pôr fim ao envolvimento. É nesse ponto que Bauman (2004) faz sua crítica a essa teoria da relação pura, apontando que existe incoerência nos relacionamentos atuais, pois ao mesmo tempo que pode haver um envolvimento mais íntimo, podem ser rompidos a qualquer momento, criando insegurança. Assinala ainda que isso acontece porque a sociedade contemporânea é marcada por fluidez e transitoriedade dos vínculos, o que transforma as relações sócios afetivas em investimentos financeiros e o compromisso em armadilha a ser evitada. A ideia de que as relações afetivas são como aplicações financeiras, em que as pessoas dispõem de dinheiro, dedicação e tempo, esperando algo em troca, por exemplo, segurança, companhia, apoio, dão caráter de transitoriedade às relações amorosas.

O namoro começa no momento de formação do par, como uma das etapas do processo de seleção dos cônjuges, e ocorre, em regra, com a oficialização do par. O sentido do namoro era dado pela expectativa de casamento, mas hoje nem sempre tem essa finalidade, tornando-se uma modalidade peculiar, pois sua duração pode se alterar conforme a vontade do casal.

Um ponto a ser referido nas novas acepções de relacionamentos é no tocante ao sexo. No final do século 20, o sexo deixou de ser apenas um meio para procriação, tornando- -se uma maneira de busca do prazer a dois. Durante muito tempo, se perpetuou a ideia de valorização da virgindade da mulher, sendo a conjunção carnal antes do casamento motivo de vergonha, ensejando diversos preconceitos, muitos deles implementados pela religião. Hoje, as novas gerações quebraram o tabu acerca do sexo, assunto que antes era até proibido ou constrangedor, mas agora é muito comum abordar a temática nas relações de namoro.

O art. 178, § 1º, do Código Civil de 1916 afirmava que “prescreve […] em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada”. No dispositivo transcrito, o sexo praticado antes do casamento era capaz de motivar a nulidade de um casamento, pois, nos anos 1900, a virgindade da mulher era um fator atrelado à sua boa índole, só deveria ser perdida após o casamento. Já no que concerne à virgindade do homem não havia uma sanção prevista.

O atual Código Civil não adota mais a condição de anulação da mulher deflorada antes do casamento, uma vez que a sociedade tem uma nova concepção sobre o sexo. Portanto, o rompimento do hímen decorrente da conjunção carnal antes do casamento não é mais tratado como um crime gravíssimo, já que relações sexuais nas relações que antecedessem o matrimônio, como no namoro, são tratadas com naturalidade em razão de ser livre a busca de satisfação pessoal e do prazer.

O namoro é uma modalidade de relacionamento da maioria dos jovens. Pesquisa do IBGE demonstra que no ano de 2012 a idade mediana dos homens na data do casamento foi de 28 anos, ao passo que mulheres de 26 anos, permitindo verificar que os brasileiros estão namorando mais antes de se casar, uma completa mudança de parâmetros se comparados aos anos 19001.

Na perspectiva histórica é notório que o direito e a moral vêm se ajustando para que possam regular as ações da sociedade. Antes, existiam diversas sanções para o sexo ocorrido antes do casamento, para aqueles que praticavam atos sexuais, ainda que por vontade própria mas sem o consentimento dos pais. Hoje, verifica-se que com a instituição do namoro os atos antes condenáveis ganham contornos lícitos sob o prisma jurídico e moral.

Diante da massificação social do namoro surge a necessidade da intervenção do direito no tocante à responsabilidade civil. O casamento e a união estável são acompanhados de proteções para os envolvidos, ao passo que a modalidade namoro não tem respaldo efetivo aos namorados, cuidados que devem ocorrer em virtude da sua durabilidade, do envolvimento econômico, social e afetivo.

  • DEFINIÇÃO E ANÁLISE DO CONTRATO DE NAMORO

As relações de namoro ganharam contornos marcantes na sociedade brasileira, em alguns casos apresentam características que se assemelham às uniões estáveis, de maneira que enseja a possibilidade de buscar a tutela dos seus efeitos. Na tentativa de evitar a configuração da união estável, criou-se a figura do contrato de namoro.

A natureza jurídica do namoro é uma matéria que merece destaque. Para analisar o estelionato sentimental, antes devemos apreciar a figura do contrato de namoro, que pode ser definido da seguinte forma:

Trata-se de um negócio celebrado por duas pessoas que mantém relacionamento amoroso – namoro, em linguagem comum – e que pretendem, por meio da assinatura de um documento, a ser arquivado em cartório, afastar os efeitos da união estável (Gagliano; Pamplona Filho, 2014, p. 27).

Não há dúvida de que as relações de namoro possuem características contratuais, no entanto é preciso elucidar algumas questões acerca da aplicabilidade do contrato de namoro de forma solene, englobando a discursão do uso de alguns efeitos, para que não se torne um meio de um dos pactuantes se desonerar de obrigações e fraudar a lei, já que existe uma grande preocupação em afastar os efeitos da união estável através do namoro “de papel passado”.

Os contratos de namoro, diferentes do casamento e da união estável, são atos não solenes, ou seja, sua constituição acontece mediante a vontade e o aceite das partes, formação de maneira livre, lastreada pelo consentimento.

O Código Civil, em seu art. 425, dispõe que “é lícito às partes estipular contratos atípicos”, e o contrato de namoro tem natureza atípica. No entanto, é inválida a celebração de contrato com a finalidade de evitar a partilha de bens, direitos relativos a alimentos e outros referentes à união estável, podendo até servir como meio de provar a inexistência da união estável, o que deve ser apreciado de modo relativo, já que uma vez acordado, não tem o condão de afastar seus efeitos.

O direito contratual adota diversos princípios, por isso é necessária sua aplicação para a constituição dos contratos de namoro. O princípio da autonomia da vontade é o alicerce da atividade pactual, o direito dos envolvidos expressarem suas vontades sem que haja interferência estatal. O princípio do consensualíssimo traz a ideia de que a celebração do contrato se dá com o acordo de vontades, abstendo-se de solenidades ou formas, exceto em casos específicos, com previsão em lei.

Outro princípio que norteia as relações contratuais é o da boa-fé, que deve transcender os pactos elaborados através de contratos e ser aplicado em qualquer relação social, moral ou afetiva. A boa-fé prega que as partes devem se comportar de forma correta durante as tratativas, formação e execução dos contratos, impondo um padrão de conduta de agir com retidão, honestidade, probidade e lealdade, adequando o uso dos costumes do lugar (Gonçalves, 2013, p. 54).

O art. 422 do Código Civil preceitua que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua exceção, os princípios de probidade e boa-fé”. Logo, a legislação vigente insere tal princípio como cláusula geral das relações contratuais, impondo uma regra de conduta, ou norma de comportamento, também chamada de boa-fé objetiva.

Além da concepção objetiva (ética), existe a característica subjetiva, que pode ser entendida como um atributo psicológico desse princípio da, ou seja, em seu caráter subjetivo refere-se ao estado de consciência, uma ideia da psicologia, a noção do agente de agir de modo correto com relação ao conhecimento da situação, dos fatos e do direito.

Em relação à análise dos contratos de namoro é indispensável que os namorados constituam uma relação pautada na boa-fé, em que deve imperar o afeto, a fidelidade, o conhecimento frente à família e amigos, não envolvendo a comunicabilidade do âmbito patrimonial, econômico ou financeiro. Desse modo, as relações de namoro têm o viés subjetivo no que tange à regulação contratual, devendo ser combinada entre as partes.

No que se refere à constituição dos contratos de namoro com o objetivo de afastar a incidência da união estável, seria um contrato sem validade, pois ao instituir um contrato solene com esse fim ele estaria viciado, visto que não é possível implementar uma cláusula que imponha a incomunicabilidade do patrimônio presente e futuro. Sendo assim, o contrato de namoro não impede que se materialize a união estável, pois essa se trata de um fato jurídico, um fato da vida, uma situação fática com reflexos jurídicos, mas que decorre da convivência humana (Farias; Rosenvald, 2014, p. 372).

O princípio boa-fé pode ser aplicado aos contratos de namoro com função limitadora, chamada de venire contra factum proprium, ou teoria dos “atos próprios”, a qual:

…] protege uma parte contra aquela que pretende exerce uma contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e da confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte (Aguiar Júnior, 2003, p. 251-152).

Portanto, quando se constitui uma relação de namoro as partes têm ciência da dimensão de relacionamento, observando os laços afetivos, íntimos, econômicos e patrimoniais. Com isso, se o namoro começar a envolver o âmbito econômico ou patrimonial não poderá uma das partes, através de um contrato firmado anteriormente, arguir a impossibilidade de constituir uma união estável, ou afastar os efeitos decorrentes dos atos e comportamentos que foram instituídos por ela. Na maioria dos casos percebe-se que as partes vão demonstrando de forma inconsciente, através de suas ações, interesse de constituir família e de viver juntos, criando uma expectativa de direitos.

Nesse sentindo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que:

Direito civil. Definição de propósito de constituir família para efeito de reconhecimento de união estável. O fato de namorados projetarem constituir família no futuro não caracteriza união estável, ainda que haja coabitação. Isso porque essas circunstâncias não bastam à verificação da aff ectio maritalis. O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado”, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, estar constituída. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício). A coabitação entre namorados, a propósito, afigura-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar- -se à realidade social. Por oportuno, convém ressaltar que existe precedente do STJ no qual, a despeito da coabitação entre os namorados, por contingências da vida, inclusive com o consequente fortalecimento da relação, reconheceu-se inexistente a união estável, justamente em virtude da não configuração do animus maritalis. (REsp 1.257.819-SP, Terceira Turma, DJe 15.12.2011). REsp 1.454.643- RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 3.3.2015, DJe 10.3.2015).

Outro instituto que merece destaque quando se discute os contratos de namoro é o da fraude à lei. Para examiná-lo é preciso que sejam abordados alguns temas: primeiro, a figura dos ilícitos típicos, os quais referem-se a condutas contrárias a regras; segundo, dos ilícitos atípicos, que são atos praticados contra princípios.

Para a configuração da fraude a lei, faz-se indispensável, inicialmente, que alguém realiza um ato invocando o amparo de determinada norma, chamada lei de cobertura. A particularidade está em que, ao assim agir, labora o sujeito de direito com o propósito de concretizar um fi m ou escopo vedado por outra norma legal, sendo esta de colorido imperativo (Nobre Júnior, 2014).

A fraude à lei só se aplica a normas cogentes, de caráter imperativo, aos princípios que não podem ser subtraídos de determinada situação. Em uma relação contratual de namoro em que os indivíduos elaboram um contrato instituindo cláusulas de não comunicabilidade do patrimônio, e, no entanto, constroem uma vida juntos, passando a adquirir patrimônio, dependência financeira e expectativa de viver a dois, fica afastada a autonomia da vontade exercida anteriormente entre as partes no pacto contratual. Da situação exposta, é evidente que o negócio jurídico realizado contaria com a intenção de fraudar a realidade fática, uma ocasião em que o princípio da boa-fé, pilar das relações contratuais e com previsão no ordenamento jurídico, estaria sendo ferido caso a mencionada cláusula fosse utilizada como maneira de afastar uma eventual união estável, fraudando os efeitos patrimoniais.

Logo, uma cláusula contratual que tenha o intuito de praticar um resultado proibido pela lei ou pelos princípios do direito seria uma fraude à lei. O Código Civil, em seu art. 166, inc. iv, determina que “é nulo o negócio jurídico quando […] tiver por objetivo fraudar a lei imperativa”. A fraude à lei pode invalidar um negócio jurídico, com isso verifica-se que cláusulas de cunho patrimonial podem ter o objetivo de fraudar e, assim, serem passiveis de nulidade. Ocorre quando uma das partes deseja alcançar um resultado proibido pelo ordenamento jurídico, expressão que abrange as regras gerais, os costumes, os princípios gerais do direito, defendidos pela lei imperativa (Nobre Júnior, 2014).

No que concerne à nulidade dos contratos de namoro é preciso observar sua presunção quanto ao objeto, pois sempre que possuir cláusulas que tentem evitar a constituição da união estável não terá validade, ficando configurada a ofensa à norma cogente, de ordem pública, portanto, o negócio jurídico será nulo.

  • ESTELIONATO SENTIMENTAL

O tema estelionato sentimental ampara sua definição no art. 171 do Código Penal: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”

No entanto, o presente trabalho não pretende tipificar o instituto como uma espécie de crime, mas usar o dispositivo de modo análogo para imputar a responsabilidade civil para o agente causador do dano em situações especificas ocorridas no curso do namoro.

No estelionato sentimental a responsabilidade civil ocorre de modo subjetivo, ou seja, necessariamente a conduta do agente deve causar um dano e deve-se comprovar a sua culpa para que haja indenização. Em análise do art. 171 do Código Penal deve-se constatar quatro elementos para que possa haver a configuração da responsabilidade civil, como prescreve o art. 186 do Código Civil (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”). O primeiro elemento a ser levado em consideração é o ato ilícito, nas relações de namoro devem imperar os deveres de lealdade e de fidelidade entre os namorados. Assim, se um dos sujeitos cometer um ato que incida sobre a coisa ou a pessoa a e a conduta praticada resultar em vantagem indevida, um dos namorados aproveitando-se das condições do relacionamento para causar um dano, esse ato contraria a lei ou princípio do direito.

Como segundo elemento que caracteriza o instituto deve-se observar a conduta dolosa do namorado ou da namorada; se tiver a intenção, através de uma ação ou omissão, de ferir o direito do seu par, haverá a quebra do princípio da boa- -fé, pois a conduta dolosa traduz vontade de praticar determinado ato a fim de lesar um direito (Gonçalves, 2015, p. 53).

No que concerne à conduta culposa do agente torna-se complexa a caracterização do estelionato sentimental, uma vez que as ações que empregam negligência, imperícia e imprudência são muito difíceis de ser identificadas nos relacionamentos. Em linhas práticas, não há como determinar se um dos namorados conseguiu auferir proveito econômico de modo culposo para que se comprove tal feito, depende também do livre convencimento do juiz, portanto descarta-se a modalidade culposa.

O terceiro elemento presente para configuração do estelionato sentimental é o nexo de causalidade, que pretende identificar o sujeito responsável pelo dano, e tem a função de delimitar o âmbito da reparação. A causa do dano deve estar relacionada à conduta adotada pelo agente para que possa haver a reparação. É indispensável que um dos namorados cometa um ato que tenha a intenção de ferir a esfera patrimonial do seu par e que em decorrência da relação assuma uma determinada obrigação que não lhe é devida.

A título de exemplo, veja-se a seguinte situação: o namorado faz sua parceira contrair dívidas em seu cartão de crédito, compras pessoais, com a promessa de que futuramente irá pagar-lhe as prestações, mas acontece o rompimento do namoro e as dívidas permanecem em nome da antiga namorada. Percebe-se que o fato do endividamento só ocorreu pela conduta do sujeito, que por estar na relação de namoro aproveitou-se para que alguém contraísse dívidas suas, configurando vantagem ilícita por meio de uma fraude, pois a namorada só fez essas prestações em virtude da afetividade e lealdade advinda da relação de namoro. O momento fraudulento não acontece com o término da relação, mas com o não cumprimento das obrigações que eram devidas.

O nexo de causalidade é verificado pelo efeito da ação do agente, quando se constata a existência de uma vantagem ilícita que causa prejuízo a outro que, aproveitando-se da relação de namoro, configura a relação de causalidade. O sujeito que age com a falta da boa-fé com seu namorado, quebrando a confiança e o afeto estabelecido, realiza uma fraude.

As relações de namoro, como qualquer outra, podem sofrer desgaste e ter um fim. A mistura econômica e patrimonial cria uma expectativa de construção de futuro juntos, por isso é preciso proceder com cautela a análise de fatores que cercam a relação, para que os agentes não sofram danos futuros decorrentes da relação de namoro. Assim, se o agente perceber que não deseja mais continuar no relacionamento ele precisa adotar postura correspondente com a boa-fé, ou seja, se não almeja mais continuar e haverá rompimento da relação, tem de procurar não envolver os aspectos patrimoniais.

O princípio da boa-fé não só norteia a legislação vigente como também se impõe como uma norma de conduta moral, em qualquer relação, afetiva ou contratual. Espera-se que os envolvidos ajam com boa- -fé, porque não é razoável que uma pessoa (irmão, pai, amigo, parente) pegue dinheiro emprestado em nome de outro e, depois, deixe de saldar as dívidas. Os relacionamentos de namoro são pautados no afeto mútuo, no entanto também encontram limitações nas esferas patrimonial e econômica. A sociedade, em seu caráter moral, utilizando-se do bom senso estabelece limites para que o namoro não culmine na junção de obrigações econômicas, mas sim em uma construção de conhecimento, afeto e construção de um futuro juntos.

Por fim, o quarto elemento a ser constatado é o dano. Para que haja a responsabilidade civil é imprescindível que o agente cause um dano a outrem. Essa lesão deve conter relação direta com a conduta do sujeito, devendo existir provas dos danos, podendo ter o caráter material ou moral. Verificando que existem os elementos apontando, os quais estão descritos no art. 186 do Código Civil, fica tipificado o enriquecimento sem causa descrito no art. 884 do Código Civil, gerando dever de indenização, conforme o art. 927, caput (“Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”) e o art. 944, caput (“A indenização mede-se pela extensão do dano”), ambos também do Código Civil.

A responsabilidade civil no curso do namoro é tema que começa a chegar ao Judiciário, e podemos remeter ao princípio da operabilidade do juiz, ou seja dar aos magistrados a possibilidade de interpretar a norma de maneira mais ampla, dando a possibilidade de a sociedade ter justiça e um poder jurisdicional capaz de aplicar os valores sociais.

A jurisprudência brasileira tem adotado posições favoráveis quanto à caracterização do estelionato sentimental, condenando a indenizar por danos materiais, como observa-se em decisão pronunciada pelo juiz da Sétima Vara Cível de Brasília, em que houve a condenação do ex-namorado para pagar à autora valores decorrentes de empréstimos e outros gastos realizados na vigência do casamento.

Em um relacionamento que durou quase dois anos o ex-namorado realizou empréstimos financeiros, empréstimos de carro, fez pedidos de créditos de celular e realizou compras usando o cartão de crédito na namorada – sempre com a promessa de que no futuro esses gastos seriam quitados. Verifica-se em documentos acostados aos autos que, além desses gastos, a namorada ainda realizou quitações de dívidas em instituições bancárias, valores devidos pelo réu, comprou-lhe roupas e sapatos, pagou suas contas de telefone, emprestou- -lhe seu carro. Os danos materiais provenientes do estelionato sentimental chegaram ao total de R$ 101.537,712.

Diante da nítida lesão patrimonial que a namorada sofreu, é justo que a vítima tenha a reparação material dos danos sofridos. No que concerne aos danos morais, esses foram julgados improcedentes, porque o juiz entendeu como mero dissabor o rompimento da relação, não havendo sua caracterização. No entanto, em uma análise detida do caso em tela verifica-se que o ex-namorado contraiu matrimônio com uma pessoa diversa no curso do relacionamento com a autora, sendo esse fato também um dos motivos do rompimento.

Tendo em vista que o dano moral atinge a personalidade do ofendido, a decisão do Judiciário carrega controvérsias. O ex-namorado aproveitando-se da condição que o relacionamento lhe proporcionava, teve a intenção de induzir a vítima a contrair esses débitos, cabendo também a reparação moral pelo fato de que se relacionou com outra pessoa no curso do namoro, chegando a contrair matrimônio, ferindo o dever de fidelidade que o relacionamento lhe impunha.

A parte autora, mais do que a reparação patrimonial, buscava a compensação pela lesão aos seus direitos de personalidade praticada pelo ex-namorado, sendo eles a intimidade, os sentimentos afetivos e até a própria imagem, tendo em vista que o réu, muito além de obter uma vantagem econômica, aproveitou-se do afeto e da dedicação da e autora na relação.,

Da sentença prolatada pelo juiz de primeira instância houve apelação, e a Quinta Turma do STJ manteve a sentença que julgou parcialmente procedente o pedido formulado pela parte autora:

Processo civil. Término de relacionamento amoroso. Danos materiais comprovados. Ressarcimento. Vedação ao enriquecimento sem causa. Abuso do direito. Boa fé objetiva. Probidade. Sentença mantida.

  1. Deve ser mantida a sentença a quo eis que, da documentação carreada para os autos, consubstanciados em sua maior parte por mensagens trocadas entre as partes, depreendendo-se que a autora/apelada efetuou continuadas transferências ao réu; fez pagamentos de dívidas em instituições financeiras em nome do apelado/réu; adquiriu bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetuou o pagamento de contas telefônicas e assumiu o pagamento de diversas despesas por ele realizadas, assim agindo embalada na esperança de manter o relacionamento amoroso que existia entre os ora demandantes. Corrobora-se, ainda e no mesmo sentido, as promessas realizadas pelo varão-réu no sentido de que, assim que voltasse a ter estabilidade financeira, ressarciria os valores que obteve de sua vítima, no curso da relação.
  2. Ao prometer devolução dos préstimos obtidos, criou-se para a vítima a justa expectativa de que receberia de volta referidos valores. A restituição imposta pela sentença tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa, sendo tal fenômeno repudiado pelo direito e pela norma.
  3. O julgador não está obrigado a pronunciar-se quanto a todos os dispositivos de lei invocados pelas partes, quando entender ser dispensável o detalhamento na solução da lide, ainda que deduzidos a título de prequestionamento.
  4. Recurso conhecido e não provido.

(APC 866800 – DF, Quinta Turma Cível, 20130110467950APC, Rel. Des. Carlos Rodrigues, julgado em 08.04.2015, DJe 19.05.2015).

Em síntese, é estelionato sentimental causar danos patrimonial e afetivo. Diante das demandas que vêm ocorrendo, o Poder Judiciário começa a formar o entendimento de que deve ocorrer a reparação pelos danos materiais em decorrência da fraude afetiva.

A preocupação é no que concerne aos danos materiais, inquietação em virtude de que as relações de namoro são passíveis de término. É preciso observar que existem situações chamadas de típicas nas relações de namoro, que não podem configurar o estelionato sentimental, porque não há exploração econômica, tampouco poderá haver compensação por danos materiais.

Existem fatos que podem ser considerados típicos das relações de namoro, ou seja, circunstâncias econômicas normais que não ensejam estelionato sentimental. É possível que os namorados possuam gastos uns com os outros, desde que não haja a falta de honestidade, falta de confiança, que não ocorra a quebra da boa-fé, assim não haverá abuso financeiro.

As transações econômicas que não ensejam responsabilidade são definidas como típicas das relações de namoro. Esses gastos são considerados comuns, exercidos no dia a dia, durante a constância do relacionamento e não podem ser atrelados a ocorrências que causem um enriquecimento sem causa, não existe vantagem econômica.

Outro fator relevante é que a simples mágoa pelo término da relação de namoro não enseja o estelionato sentimental, se não houver vantagem ou exploração econômica no curso do namoro, não há o que ser pleiteado na Justiça. O término da relação é encarado como fato da vida, é normal que as relações de namoro acabem quando não há intenção de construir uma vida juntos.

No tocante ao prazo para buscar reparação por estelionato sentimental aplica-se o art. 206, § 3º, iv e v, do Código Civil, sendo o prazo prescricional de três anos, a contar do fim do namoro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo fundamenta- -se na teoria tridimensional de Miguel Reale, na qual os fatos, em interação dialética com os valores sociais, produzem as normas. Assim, os três entes citados: fato, valor e norma, influenciam-se reciprocamente. Desse modo, o fato social constante no abandono do namorado ou namorada, deixando dívidas contraídas na constância do relacionamento, realizadas pelo parceiro em nome do outro, ou despesas realizadas em virtude da relação, deixando de dividir os ônus, fere o valor “boa-fé” (e outros valores morais), exigindo responsabilização na esfera civil, já que existem os seus pressupostos: ação ou omissão; culpa ou dolo do agente; nexo de causalidade; e o dano.

O texto analisou a responsabilidade civil pela exploração econômica no curso do namoro, defendendo a possibilidade de reparação do estelionato sentimental, desde que esteja presente a conduta dolosa do agente, a intenção de aproveitar-se do relacionamento para obter uma vantagem indevida.

As relações de namoro na sociedade sofrem influências culturais; portanto, se no curso do namoro um dos agentes tiver uma conduta moralmente reprovável, configurando má-fé, poderá o magistrado promover a interpretação de que um dos namorados teve o intuito de obter vantagem econômica indevida, caracterizando o dever de indenizar tanto por danos materiais quanto por danos morais.

Para isso, aponta-se na jurisprudência um precedente que compactua com a reparação por danos materiais decorrentes da fraude afetiva, ensejando o dever de reparação por danos morais. Mas deverá haver uma análise mais detida do assunto, haja vista que, a depender do caso, entende-se que há possibilidade da reparação por danos morais advindos do estelionato sentimental.

Foi analisada a validade dos contratos de namoros, entendendo-os como instrumentos hábeis a fraudar a lei imperativa, ferindo a boa-fé, com intuito de afastar os efeitos da união estável, entendendo pela invalidade dessa modalidade contratual, que serão nulos quando eivados da intenção de afastar a constituição de tal modalidade familiar.

Dada a importância das relações de namoro e seu número crescente, percebe-se que é preciso haver discussão do estelionato sentimental, não para transformar o relacionamento em nova entidade familiar, mas para que haja proteção da boa-fé objetiva presente nas relações sociais.

Conclui-se, pois, pela possibilidade de reparação por danos materiais e morais resultantes da fraude afetiva. Diante dos novos contornos das relações de namoro na sociedade atual, o tema em debate merece destaque, impondo uma nova reflexão acerca da responsabilidade civil, aplicando parâmetros e determinando condições para que o estelionato sentimental seja uma conduta combatida.

NOTAS

1. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Projeção da População do Brasil por sexo e idade para o período 2000-2060; Estatísticas do Registro Civil 2002-2012

2. Ex-namorado terá que ressarcir vítima de “estelionato sentimental”. TJDFT, 2014. Disponível em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/ imprensa/noticias/2014/setembro/ex-namorado-tera-que-ressarcir-vitima-de201cestelionato-sentimental201d. Acesso em: 28 out. 2016.

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EX-NAMORADO terá que ressarcir vítima de “estelionato sentimental”. TJDFT, 2014. Disponível em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/ imprensa/noticias/2014/setembro/ex-namorado-tera-que-ressarcir-vitima-de201cestelionato-sentimental201d. Acesso em: 28 out. 2016.

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Egnaldo dos Santos Oliveira Junior.

Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Licenciado em História.

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