A filosofia do direito vem denominando de desacordo moral razoável a possibilidade de procedimento transfusional forçado às pessoas que se recusam à transfusão voluntária em razão de crença religiosa
Cristiano Chaves de Farias. PROMOTOR DE JUSTIÇA NA BAHIA
Alguns temas jurídicos causam tamanha divergência na sociedade que impedem a afirmação de uma solução única, pronta e acabada. Muita vez, inclusive, os argumentos (contrários e favoráveis) apresentados se mostram razoáveis e convincentes, malgrado contrapostos. São assuntos sobre os quais não há consenso, estando envoltos, quase sempre, em perspectiva religiosa, moral, ética, antropológica, psicológica etc.
Por isso, a Filosofia do Direito vem denominando esses temas como desacordos morais razoáveis. Não tenho dúvida de que um dos maiores desacordos morais razoáveis existentes na atualidade diz respeito à possibilidade de procedimento transfusional forçado às pessoas que se recusam à transfusão voluntária em razão da crença religiosa, como é o caso das Testemunhas de Jeová. Poderia o Poder Judiciário impor uma transfusão de sangue contra a vontade da própria pessoa? Tenho estudado esse tema minuciosamente há mais de 15 anos, acompanhando as decisões sobre os casos que se surgiram, bem como a literatura a respeito (não apenas jurídica) e a compreensão do tema noutros países. E, sem dúvida, a dificuldade em chegar a uma conclusão segura se mantém.
O cenário que se descortina no plano internacional é de respeito à autonomia privada, garantindo a autonomia prospectiva (preventiva) do paciente e, por conseguinte, permitindo à pessoa (no gozo de sua plena capacidade) se recusar à transfusão de sangue, inclusive por motivos religiosos. Entende-se que se trata de diretiva válida antecipada de vontade que deve ser respeitada, sob pena de violação da dignidade do titular. Recentes julgamentos do Tribunal de Ontário, Canadá, da Corte de Cassação da Italia e da Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina confirmam essa tendência de respeito à vontade humana.
Em nosso sistema jurídico, a evolução do estudo da matéria revela uma inclinação por essa solução. Doutrinadores de escol publicaram suas pesquisas, encaminhando soluções nessa esteira, reconhecendo a impossibilidade de transfusão contra a vontade do titular. Veja-se, em nossa literatura jurídica, a contribuição de Gustavo Tepedino e Anderson Schereiber (RJ), Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Álvaro Villaça Azevedo (SP) e Luís Roberto Barroso (DF), dentre outras substanciosas publicações. Também eu venho sustentando esse entendimento desde a primeira edição de nosso “Curso de Direito Civil: Parte Geral” (publicado pela Editora JusPodivm), tendo promovido uma ampliação e atualização consideráveis na edição de 2018, à luz das mais recentes manifestações. Ao meu sentir, a questão ganhou um renovado fôlego com a edição da Resolução 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina – CFM. O aludido ato normativo reconhece a efetiva possibilidade de diretivas antecipadas de vontade, como concretização do direito à morte digna (corolário inexorável do direito à vida digna). Assim, uma pessoa pode manifestar validamente a sua vontade de não receber tratamento médico em determinados casos, evitando uma “futilidade médica” (na linguagem da Bioética), com o paciente se transformando em objeto de uma obcecada descoberta de uma cura, ainda que com sacrifícios evidentes da dignidade daquela pessoa.
Ora, sendo possível recusar tratamento médico como efetivação da autonomia privada também é lícita a recusa à transfusão de sangue, com esteio em convicções religiosas. A pessoa que professa a fé das Testemunhas de Jeová, interpretando textos bíblicos dos Atos dos Apóstolos, Gênesis e Levítico, entende que haverá violação de sua dignidade em receber transfusão de sangue. Entendo que ela tem absoluto direito de ser respeitada. A convicção religiosa das minorias (como nesse caso) não pode ser asfixiada porque a maioria discorda. Sempre faço um exercício de alteridade para bem entender essa questão: não sendo Testemunha de Jeová, gostaria eu que, se os crentes nessa religião, eventualmente sendo a maioria da sociedade, impedissem a transfusão de sangue? Ou eu diria que é direito meu fazer transfusão e me autodeterminar conforme a minha convicção pessoal? Não farei com a minoria o que não gostaria que fizessem comigo. Captando esses sinais, as decisões judiciais proferidas mais recentemente garantem o direito a não transfusão. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP, AgInstr 065972.63.2013.8.26.0000) e o Tribunal Regional Federal da 1a Região (Proc 0013951-86.2016.4.01.3800/MG, rel. Des. Kassio Nunes Marques) afirmaram, em fundamentadas decisões, a possibilidade de recusa.
Aliás, a intervenção judicial sobre o tema vem se tornando frequente, na medida em que médicos e hospitais recorrem à Justiça para dirimir o conflito gerado pelo interesse do paciente, evitando incorrer em responsabilidade civil (caso venha a realizar transfusão contra a vontade do titular) ou penal (por eventual alegação de omissão de socorro).
Nessa ambiência, todavia, preciso obtemperar duas questões que me parecem relevantes. Primeiro, afigura-se necessário reconhecer o direito do profissional da Medicina em se recusar a realizar tratamento em pacientes que se recusem ao procedimento (1). Se,por uma banda, o paciente tem direito à autodeterminação, lado outro, o médico também não pode ser obrigado a violar suas crenças e convicções. Assim, poderia, fora os casos de emergência/urgência, recusar-se a assumir o tratamento.
Segundo, é preciso registrar que toda a lógica racional que conduz à conclusão de possibilidade de recusa à transfusão, por convicção religiosa, pressupõe a plena capacidade e maioridade. Em se tratando de criança e adolescente, não se faz possível a recusa. Sequer se mostra possível aos pais dispor em lugar do filho menor. Até porque não se tem certeza de que, no futuro, aquela pessoa acreditará nas crenças daquela religião. Nesse diapasão, inclusive, recebi do fraterno amigo Rodrigo Barreto a notícia de uma decisão judicial, em São José do Rio Preto, interior paulista, autorizando a transfusão contra a vontade dos pais em um recém-nascido. O caso ganhou requintes de dramaticidade porque a mãe do bebê chegou a redigir uma carta, encarecendo a não transfusão em seu filho baseada em seus dogmas religiosos. Por amor (e não por falta dele), entendia melhor não se aplicar o procedimento, em razão da crença no que seria melhor para o futuro da criança. O tema, sem duvidas, é instigante e permanece na agenda de discussões dos juristas. Rios de tinta ainda se derramarão, com certeza, prospectando aspectos e perspectivas relevantes.
Permanecerá, seguramente, como um desacordo moral razoável, pela própria riqueza de temas correlatos. Desejo, apenas e tão somente, que não se restrinja a discussão a uma suposta afirmação do direito à vida como uma obrigação imposta aos humanos. Mais do que um direito à vida, a Constituição da República, logo em seu art. 1, III, consagra como valor máximo da República Federativa do Brasil o direito a uma vida digna, o que abrange, seguramente, aspectos não apenas físicos, mas, também, psíquicos, intelectuais e emocionais.
*Cristiano Chaves de Farias é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e professor de Direito Civil.
**Artigo publicado originalmente na edição agosto/setembro de 2018 da Revista Bonijuris, número 653.
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/justica-autoriza-transfusao-de-sangue-a-crianca-de-familia-testemunha-de-jeova.ghtml.