A incongruência da pena privativa no Brasil

Sem que o poder público ofereça prisões compatíveis é impossível verificar quais são os efeitos das penas de reclusão; ---- Por Huston Daranny Oliveira Especialista em ciências criminais ---- (Bonijuris #669 Abr/Maio 2021)

Huston Daranny Oliveira ESPECIALISTA EM CIÊNCIAS CRIMINAIS PELA ESTÁCIO DE SÁ

Este artigo realiza análise acerca do surgimento e do desenvolvimento das penas, com foco nas sanções privativas de li­berdade e disposições normativas a elas aplicadas, bem como a situação em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro. Aliás, sobre as penas privativas de liberdade, houve o exame dos principais sistemas penitenciários adotados pelo mundo, suas características e distinções marcantes.

              Sob a constatação de que o sistema penitenciário brasileiro deve ser caracterizado como um “estado de coisas inconstitucional”, a pesquisa passa a examinar objeções comumente proferidas em relação à pena privativa de liberdade e ao modelo de pena ide­alizado. Ademais, indaga em qual medida a situação fática do sistema penitenciário brasileiro interfere na eficiência das penas cumpridas em prisões.

              As respostas a estes questionamentos dependem da exata compre­ensão acerca do que vem a ser o direito penal e a pena privativa de liberdade. Só então será possível dizer se o Estado ainda precisa dessa espécie de penalidade no contexto social brasileiro e quais são as alternativas para a solução da crise penitenciária nacional.

1. DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE

As penas surgem como resposta – dos integrantes da comunidade e do Estado – às infrações cometidas pelas pessoas que se desviam de um padrão jurídico-normativo estabelecido. Afinal, para a cons­tituição de sociedades organizadas há uma necessidade natural e ontológica de se instituir regras de convivência, cuja obser­vância cogente deve ser legitimada pela possibilidade de aplicação de sanções aos autores de comportamentos desviantes.

              É evidente que a história dos povos revela variados modelos de sanção ao longo dos tempos e, entre as modalidades de penas já inventadas pelo homem para a aplicação no direito sancionador, as prisões constituem marco notável. Como leciona André Estefam (2018, p. 388), o direito penal, por muitos séculos, utilizou como principais sanções as penas capitais, corporais, infamantes e cruéis, as quais passaram a ser criticadas por causa da grande iniquidade que o Estado tratava seus cidadãos criminosos. O autor lembra que as críticas do século 18 feitas por expoentes como o Marquês de Beccaria e Jonh Howard teriam chegado com fervor à América do Norte, levando à criação dos primeiros sistemas penitenciários do mundo.

1.1. Sistemas penitenciários

Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2014, p. 235) citam Manoel Pedro Pimentel:

A prisão, grande símbolo das penas privativas de liberdade, tem origem nos mosteiros da Idade Média, onde os monges recebiam o confinamento em celas como punição pelas suas faltas. No local, os clérigos deveriam dedicar-se, em silêncio, à meditação e à busca pelo arrependimento, a fim de alcançarem o perdão de Deus. Assim surge o termo “penitenciária”, oriundo das “penitências” cumpridas pelos monges durante o período em que ficavam reclusos. É o primeiro modelo de pena privativa de liberdade organizado e com métodos sistematizados. A partir de então co­meçam a surgir outras referências, com aplicação mais genérica e abrangente, visando ao alcance daqueles que cometessem deli­tos no seio da sociedade.

              Também citando Manoel Pedro Pimentel, André Estefam (2018, p. 388) obtempera que a ideia das penitenciárias da Idade Média inspirou a criação das primeiras prisões durante o século 16, em Londres, na Inglaterra. Trata-se da House of Correction, constru­ída entre 1550 e 1552, e que acarretou a edificação de diversos outros presídios ingleses. Esse autor esclarece ainda que foi no século 18 que o encarceramento foi difundido como modelo de penaliza­ção, com destaques para a Casa de Correção de Grand, na Bélgica (1775), e para o Hospício de São Miguel, em Roma (1703 e 1704).

              Dessa forma, os quatro modelos penitenciários mais conhecidos e abordados pela doutrina são o pensilvânico, o panóptico, o auburniano e o progressivo.

              O sistema pensilvânico, também chamado de belga ou celular, teve origem na cidade norte-americana da Filadélfia, maior loca­lidade do estado da Pensilvânia. De acordo com Rogério Greco (2013, p. 480), esse modelo consiste no isolamento celular ab­soluto. O condenado não pode trabalhar nem receber visitas, constantemente levado à leitura da Bíblia para que possa alcançar arrependimento.

              Pelos ensinamentos de André Estefam (2018, p. 389), essa caracte­rística de isolamento absoluto do modelo pensilvânico surgiu para dar fim à promiscuidade até então frequente nos presídios. Conhe­cido como solitary system ou solitary confinement, o sistema evo­luiu, depois, para o separate system, que admitia conversas dos presos com capelães e funcionários da prisão, além de recebimento de visitas.

              Michel Foucault (1997, p. 112) lamenta que o isolamento abso­luto do modelo pensilvânico não buscava “a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum, mas à relação do in­divíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode ilu­miná-lo de dentro”.

              Digno de severas críticas, o sistema almejava o arrependimento do criminoso ao investir mais em seus aspectos individuais e morais do que em seu reajuste social. Pretendia ensinar valores éticos perdidos ou deturpados ao longo da vida do delinquente. Porém, tais métodos geravam fortes ofensas à dignidade do condenado.

              Não é com a leitura obrigatória da Bíblia que os valores da religião serão impregnados na mente. É possível que essa estratégia até piore a situação de raiva, rancor ou outro sentimento. Quando alguém comete um crime, um dos principais objetivos da aplica­ção da pena privativa de liberdade deve ser a reintegração social. Práticas como o isolamento e o silêncio absolutos, bem como a proibição do trabalho, certamente dificultam esse intuito.

              André Estefam (2018, p. 389) acrescenta – entre o sistema celular e o auburniano – o sistema panóptico, criado por Jeremy Ben­tham na Inglaterra do século 19, especialmente pela necessida­de de resolver o problema do crescente encarceramento advindo da independência dos Estados Unidos e do processo de depor­tação da Austrália.

              Jeremy Bentham (2008, p. 20-21) descreve um modelo de “casa de inspeção penitenciária” formado, basicamente, por um edifí­cio circular em que as celas ocupavam a circunferência e ficavam separadas entre si para impedir a comunicação entre os deten­tos, havendo partições na forma de raios, saindo da circunferên­cia em direção ao centro, onde ficava o alojamento do inspetor. Tal engenharia objetivava favorecer a vigilância dos detentos, porquanto os funcionários do estabelecimento prisional, no cen­tro da construção, tinham a visão de toda a estrutura, fator que contribuía para a segurança e a dominação – com a “aparente onipresença do inspetor”, nas palavras do seu idealizador.

              Em aprofundamento, Michel Foucault (1997, p. 95) detalha o funcionamento e a estrutura arquitetônica do sistema panóptico:

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composi­ção. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, corres­pondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, per­mite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo.

              Já o sistema auburniano, criado na cidade norte-americana de Auburn, no estado do Alabama, representa certa evolução em relação ao modelo da Filadélfia, por incentivar no presidiário a melhoria de questões afetas a seus aspectos sociais, como o tra­balho e a convivência com os demais condenados.

              Na lição de Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2014, p. 236), o modelo auburniano mantinha o isolamento noturno, mas permitia o trabalho dos condenados, inicialmente nas próprias celas e, depois, ao lado dos demais detentos. O sistema manteve a exigência de silêncio absoluto, conhecido também como silente system, mesmo quando os presos estavam no trabalho comum.

              Em visão semelhante, Michel Foucault (1997, p. 112) acrescenta que o modelo de Auburn prescrevia cela individual durante a noi­te, porém com trabalho e refeições em comum. A regra do silêncio absoluto continuava vigente: o detento só poderia falar com os guardas se houvesse permissão e se as palavras fossem proferidas em voz baixa, em clara referência ao modelo monástico.

              Apesar de representar uma evolução ao modelo anterior, o sis­tema penitenciário de Auburn ainda merece críticas por não se preocupar devidamente nem com a ressocialização nem com a dignidade do condenado, mantendo práticas de pouca cientifici­dade na tentativa de o recuperar.

              Nesse sentido, André Estefam (2018, p. 389) afirma que o co­ronel espanhol Manuel Montesinos y Molina, por volta de 1834, destacou-se como crítico do sistema auburniano ao pregar o tra­tamento penal humanitário, suprimindo castigos corporais e re­tribuindo o trabalho do preso com remuneração, em um sentido pedagógico e ressocializador.

              O sistema progressivo inglês, segundo André Estefam (2018, p. 390), surgiu na Inglaterra no século 19, e o sistema irlandês (por ter sido adotado posteriormente na Irlanda) em 1857. O sistema inglês foi criado pelo capitão da Marinha Real inglesa, Alexander Macono­chie, então diretor de um presídio na Austrália. O sistema irlandês foi proposto por Walter Crofton para aperfeiçoar o modelo utiliza­do na Inglaterra. Mas em que consistem as diferenças?

              Conforme Rogério Greco (2013, p. 481), o sistema inglês se ba­seia na metodologia progressiva de penas que cumpre três estágios de execução. No período de prova, o detento é mantido completamente isolado – tal como no sistema pensilvânico; no segundo estágio, isolamento noturno e permissão do trabalho em comum, todavia mantendo-se o silêncio absoluto – em ideia semelhante ao sistema auburniano; no terceiro e último, permi­tem-se alguns privilégios ao preso, como livramento condicional e atuação nas public work-houses.

              O sistema progressivo irlandês, nos termos dos estudos de André Estefam (2018, p. 390), consiste em modelo criado com o intuito de aperfeiçoar o sistema inglês. Sua lógica era promover a segrega­ção absoluta e ir concedendo progressiva libertação ao preso que demonstrasse readaptação ao convívio social. Ao contrário do sis­tema da Inglaterra, o modelo da Irlanda era composto por quatro fases: a penal, com a segregação em uma cela; a da reforma, com isolamento noturno; a intermediária, com permissão de trabalho em comum; e a da liberdade provisória, que com o tempo se tor­naria definitiva, caso o detento mantivesse bom comportamento.

1.2. Disciplina jurídico-normativa brasileira

O legislador brasileiro, ao utilizar as experiências internacionais para escolher o modelo que melhor se ajustasse à realidade do país, adotou principalmente métodos e princípios do sistema progressivo, que é o que mais se assemelha ao modelo de priva­ção de liberdade atualmente previsto no Código Penal.

              André Estefam (2018, p. 390) comenta os modelos adotados nos có­digos penais utilizados ao longo da história brasileira. O Código Criminal de 1830 não chegou a um sistema específico, mas hou­ve diversas tentativas para a utilização do sistema auburniano (Casa de Correção, 1882). Já o Código Penal de 1890 foi inspirado no sistema progressivo irlandês, pois prescrevia a possiblidade de transferência para a penitenciária agrícola depois do cumpri­mento de metade da pena nas condenações superiores a seis anos de prisão e, em caso de boa conduta, permitia a adoção do instituto do livramento constitucional, surgido em 1924.

              O Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940) – em linha de pensamento semelhante à do sistema penitenciá­rio – adotou o modelo progressivo[1], como se pode observar no art. 33, § 2º, e também na Exposição de Motivos 211, de 9 de maio de 1983, elaborada por ocasião da reforma de institutos e dispositivos da parte geral:

A fim de humanizar a pena privativa da liberdade, adota o Pro­jeto o sistema progressivo de cumprimento da pena, de nova índole, mediante o qual poderá dar-se a substituição do regime a que estiver sujeito o condenado, segundo seu próprio mérito.

              Desde a implantação do regime fechado, fase mais severa do cumprimento da pena, o projeto possibilita a outorga progressiva de parcelas da liberdade suprimida.

              O intuito legislativo mais claro, portanto, é aplicar uma pena privativa de liberdade necessária e suficiente para reprovação e prevenção do delito (art. 59 do cp), sem deixar de promover o respeito à dignidade humana do criminoso, postulado básico da sociedade e fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, iii, crfb/1988).

              A despeito das visões em contrário dos posicionamentos da es­cola abolicionista, a legislação criminal brasileira continua enten­dendo a aplicação da pena privativa de liberdade como medida necessária a determinadas espécies de crimes. E, a bem da verda­de, é preciso ponderar que as normas penais brasileiras adotam o encarceramento como ultima ratio da penalização, preferindo as outras espécies de pena – restritivas de direitos e multas – an­tes de aplicar a privação de liberdade.

              Assim, embora os tipos penais prevejam abstratamente a comina­ção de penas privativas de liberdade em seus preceitos secundá­rios para que possam ser efetivamente cumpridas, é necessário que sejam reunidas condições desfavoráveis ao condena­do. Afinal, antes de ser levado ou mantido em uma penitenciária para cumprir pena, ele poderá ser beneficiado por diversos pre­ceitos da legislação penal. São os institutos despenalizado­res da composição dos danos civis, transação penal e suspensão condicional do processo (arts. 72, 76 e 89 da Lei 9.099/95), a substituição de pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (artigo 44 do cp), a multa substitutiva (art. 60, § 2º, cp), a suspensão condicional da pena (art. 77, cp), o livramento condicional (art. 83, cp), as saídas temporárias (art. 122 e seguintes da Lei de Execução Penal – lep), a graça e o indulto (art. 107, II, cp), entre outros.

              Na Exposição de Motivos 211, de 9 de maio de 1983, que dispõe acerca das al­terações empreendidas na parte geral do Código Penal, a visão é a vertente lógica de tal diploma legislativo. O item 26 do documen­to reitera que uma política criminal que tenda a proteger a socie­dade deve buscar restringir a aplicação da pena privativa de liberdade apenas aos casos de comprovada necessidade, cominando sanções diversas aos crimes menos graves. Na mesma linha, o item 29 esclarece o novo leque de penas trazido pela reforma, o qual tem como intuito primordial o aperfeiçoamento da pena de prisão, quando necessária, e a sua substituição, quando aconselhável, desde que garantida a eficiência do poder sancionador e corretivo do Estado.

              Por conta dessa quantidade de benefícios dos quais se pode va­ler um condenado em processo criminal a fim de ficar isento da pena privativa de liberdade, Bruno Carpes (2018), no artigo “O mito do encarceramento em massa”, critica essa realidade do sistema penal brasileiro:

Após inúmeras mudanças legislativas, iniciadas em 1984 por um sistema progressivo irreal, o sistema prisional assemelha-se a uma porta giratória de criminosos, permitindo-se, com o sangue e o sofrimento de incontáveis vítimas, que um malfeitor tenha de cometer inúmeros crimes para permanecer tempo razoável em regime fechado. Em outras palavras, verifica-se que os condena­dos criminalmente permanecem pouquíssimo tempo no sistema prisional, o que demonstra a falta do efeito intimidatório/dissua­sório inerente à pena de prisão por tempo prolongado, confor­me alertava o Nobel Gary Becker.

                   Em breves palavras, a polêmica penal desse ponto gira em torno de saber quando a pena privativa de liberdade é necessária e quando ela deixa de ser. Apesar de algumas vozes ainda defen­derem a abolição da pena de prisão, não parece nada razoável deixar de utilizar a privação de liberdade como sanção nas so­ciedades do tempo atual, notadamente por inexistir alternativa mais adequada para os casos em que aquela é administrada.

              Antes de prosseguir, porém, é imprescindível analisar o regra­mento específico das penas privativas de liberdade no Brasil, suas espécies e peculiaridades. Isso porque o ordenamento jurí­dico pátrio prevê o cumprimento da sanção privativa de liberda­de em, pelo menos, três maneiras distintas: a reclusão; a detenção; e a prisão simples. As duas primeiras são aplicadas aos crimes e a última é destinada às contravenções penais[2].

              Nos termos do art. 33 do Código Penal, a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto, enquanto a pena de detenção deve ser cumprida em regime semiaberto ou aberto. Já a prisão simples, como ressalta André Estefam (2018, p. 392), é cumprida sem rigor penitenciário, em regime aberto ou se­miaberto (sem qualquer possibilidade de regressão para regime fechado), possui trabalho facultativo para penas de até 15 dias, e impõe a separação do condenado em relação aos que estão em reclusão ou detenção.

              De acordo com Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2014, p. 238), a tendência moderna é unificar as espécies de penas privativas de liberdade em apenas um modelo de sanção (unificação do sistema prisional). Aliás, apesar de o Código Penal brasileiro ter mantido a distinção das espécies de penas privati­vas de liberdade, a diferença entre reclusão e detenção é “quase puramente formal”.

              A diferença é que a pena de reclusão pode ser iniciada em qualquer dos três regimes (aberto, semiaberto ou fechado), enquanto a detenção só pode ser iniciada no regime aberto ou semiaberto, podendo o condenado ser transferido para o regime fechado no caso de regressão (art. 118 da lep).

              Consoante o art. 33, § 1º, do Código Penal, o regime fechado consiste na execução da pena em estabelecimento penitenciário de seguran­ça máxima ou média; o regime semiaberto é a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; en­quanto o regime aberto trata da execução da pena em casa de al­bergado ou em localidade similar e adequada às suas finalidades.

              No regime fechado o condenado fica sujeito a trabalho durante o dia e a isolamento no período noturno. O trabalho é realizado em comum no interior do estabelecimento prisional, de acordo com as aptidões de cada condenado e com as características da pena, podendo haver prestação de serviço externo em atividades ou obras públicas (art. 34, cp).

              Os arts. 87 e 88 da lep revelam que o regime fechado acarreta o cumprimento da pena em penitenciárias em que o condenado fica alojado em cela individual com dormitório, aparelho sanitário e lavatório. O ambiente deve ser dotado de salubridade, ou seja, possuir medidas adequadas de aeração, insolação e condiciona­mento térmico. Ademais, a lei prescreve uma área mínima de seis metros quadrados para a unidade celular. Em se tratando de peni­tenciária destinada ao sexo feminino, acrescenta-se a necessidade de seção especial para gestantes e parturientes, bem como de cre­che para abrigar crianças entre seis meses e sete anos que estejam desamparadas em virtude da sanção aplicada à genitora.

              Quanto ao regime semiaberto, também há trabalho em comum durante o período diurno, com a peculiaridade de as tarefas se­rem executadas em colônia agrícola, industrial ou estabelecimen­to congênere. Nesse caso, tanto o trabalho externo quanto a fre­quência em cursos são admitidos (art. 35 do cp). A lep ressalva que o condenado pode ser alojado em ambiente coletivo, desde que haja respeito às condições mínimas de salubridade e dignida­de, com seleção adequada de presos e preservação da capacidade máxima para atender à individualização da pena (arts. 91 e 92).

              Em se tratando do regime aberto, destacam-se os princípios de autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado, pois ele deverá trabalhar, frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada no ambiente externo do estabelecimento, sem vigilân­cia (art. 36, cp). O lugar adequado para esse regime é a casa de albergado, que deve estar situada em centro urbano, separado dos demais ambientes, sem obstáculos físicos para fugas e com local apropriado para cursos e palestras (arts. 93 a 95, lep).

              O complexo de normas penais aplicáveis na jurisdição brasileira é farto no sentido de assegurar variados direitos às pessoas que cumprem penas privativas de liberdade, uma vez que a execução da pena não tem o condão de retirar a dignidade e a humanida­de do condenado.

              A própria crfb/1988, ao passo que garante a dignidade hu­mana como seu fundamento, preocupa-se com o condenado ao assegurar um rol de direitos e garantias fundamentais, em espe­cial no sempre lembrado art. 5º, com vedação das penas de tra­balhos forçados e cruéis (inc. xlvii, “c” e “e”), previsão para cumprimento de pena em estabelecimentos distintos, con­forme a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado – em ho­menagem ao princípio da individualização da pena (inc. xlviii), garantia de respeito à integridade física e moral dos presos (inc. xlix) e determinação para que as presidiárias tenham condições de permanecer com seus filhos durante a amamentação (inc. l).

              É sempre bom lembrar que a Constituição Federal não deve ser vista como simples carta política ou como documento sem valor normativo, de conteúdo meramente programático. Ao contrário, como defende Konrad Hesse (1991, p. 14), a norma constitucional não possui vigência distinta e independente da realidade. Afinal, sua essência “reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade”.

              Ademais, a lep concede diversos direitos aos condenados que cumprem penas privativas de liberdade, como aqueles previstos nos arts. 40 a 43: alimentação suficiente e vestuário; trabalho re­munerado; previdência social; constituição de pecúlio; tempo de descanso e recreação; exercício de atividades artísticas e intelectu­ais; assistência jurídica, material, à saúde, educacional e religiosa; chamamento nominal; igualdade de tratamento; visita de cônjuge, companheira (ou companheiro) e parentes em dias determinados.

              Há ainda os tratados de direito internacional que produzem efeitos no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente aqueles que versam sobre matéria de direitos humanos, os quais possuem sta­tus de norma constitucional ou caráter supralegal, na visão do Su­premo Tribunal Federal (stf). É o caso do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ratificado no Brasil pelo Decreto 592, de 6 de julho de 1992, que prescreve em seu art. 7º a vedação a penas cruéis, desumanas ou degradantes. No mes­mo sentido, a Convenção contra Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, ratificada no Brasil pelo Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991, veda a tortura como método de penalização (arts. 1º e 2º) e os atos que constituam penas cruéis, desumanas ou degradantes (art. 16).

              A Convenção Americana de Direitos Humanos, promul­gada no Brasil por intermédio do Decreto 678, de 6 de novem­bro de 1992, dedica seu art. 5º à defesa de direitos relativos à integridade pessoal – seja física, psíquica ou moral –, estabe­lecendo a proibição de torturas e de penas cruéis, desumanas e degradantes, além de defender a ideia de que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. Ademais, a convenção americana adentra questões mais específicas relacionadas às sanções privativas de liberdade, como a individualização da pena, a necessidade de separação entre condenados e proces­sados, a prescrição de princípios e regramentos diferenciados a crianças e a adolescentes, bem como a orientação de que tais penas devem ter como intuito primordial a reforma e a readap­tação social dos condenados.

              Não restam dúvidas de que o ordenamento jurídico bra­sileiro, tanto em seu regramento interno quanto no aspecto das normas internacionais que passa a adotar, possui farta e conside­rável previsão de direitos e garantias fundamentais aos condena­dos a penas privativas de liberdade. O legislador preocupou-se em prever um sistema marcado pelo caráter progressivo do cumpri­mento da pena, pelo respeito às integridades física e psíquica dos condenados, e por fornecer estruturas condizentes com o propó­sito de corrigir, prevenir, reeducar e ressocializar os detentos.

              O grande problema surge quando se observa que existe um hia­to enorme entre o que está previsto na lei (como deveria ser) e o que existe e acontece de fato nas penitenciárias e nos demais ambientes voltados à execução de penas privativas de liberdade (como realmente é).

1.3. O contrassenso fático das prisões brasileiras

Sem ignorar as demais espécies de penas, as sanções cumpridas em prisões, notadamente nos regimes fechado e semiaberto das penitenciárias brasileiras, na clássica pena de prisão e no modo como vem sendo executada, contribuem para a existência de graves problemas na execução das sanções como um todo.

              Na verdade, as penitenciárias brasileiras formam um cenário crítico de completo caos, com superlotação carcerária, falta de estrutura adequada aos fins da penalização, diuturna violação de direitos fundamentais dos detentos.

              A Câmara dos Deputados realizou, entre 2007 e 2009, a Comissão Parlamentar de Inquérito (cpi) do Sistema Prisional, oportunida­de em que elaborou documento de aproximadamente 600 pági­nas. Ao investigar a realidade carcerária brasileira, empreendendo diligências nos 26 estados e no Distrito Federal, os responsáveis constataram falta de higiene e de assistência material; acomoda­ções totalmente inadequadas à dignidade dos condenados; insufi­ciência de vestuário (havia casos de nudez absoluta); alimentação deficiente e sem utensílios apropriados (comida distribuída em sacos plásticos); falta de assistências médica, farmacêutica, odontológica, psicológica, jurídica e educacional; superlotação de celas; ócio (dados do Departamento Penitenciário Nacional reve­lam que mais de 80% dos presos não trabalham); comércio inter­no com preços abusivos; tortura; maus-tratos; presos sem contato com o sol há vários dias, em ambientes sem ventilação e ilumi­nação natural; presídios femininos com diversas violações aos di­reitos das detentas (falta de higiene básica[3], ausência de creches e berçários para o cuidado dos filhos); e constantes violações ao princípio da individualização da pena (sistemas de classificação de presos extremamente falhos e deficientes, em desrespeito à nor­ma constitucional que impõe a separação dos detentos de acordo com idade e natureza do delito[4]).

              Reportagem do portal de notícias G1 revela apontamentos do “Relatório de monitoramento de recomendações: massacres pri­sionais dos Estados do Amazonas, do Rio grande do Norte e de Roraima”, elaborado por membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (mnpct) e do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (cnpct). O documento, data­do de 2018, traz relatos de humilhação coletiva, desnudamentos, maus-tratos, espancamentos e agressões extremas, a ponto de a Penitenciária de Alcaçuz (maior do Rio Grande do Norte) ser comparada a Abu Ghraib, presídio iraquiano marcado por práti­cas de tortura durante o regime de Saddam Hussein.

              Ao discorrer sobre o estado dos locais em que se cumprem san­ções privativas de liberdade no Brasil, Carlos Alexandre de Azeve­do Campos (2016, p. 266-267) também revela graves violações, como o ócio dos detentos, a frequência de massa­cres, homicídios, estupros, decapitações, estripamentos, esquar­tejamentos, tortura policial, espancamentos, estrangulamentos, choques elétricos, tiros com bala de borracha. E acrescenta:

Os presídios e delegacias não oferecem, além de espaço, condi­ções salubres mínimas. Segundo relatórios de inspeção do CNJ, os presídios não possuem instalações adequadas à vida humana. Estruturas hidráulicas, sanitárias e elétricas depreciadas e celas imundas, sem iluminações e ventilação, oferecem perigos cons­tantes para os presos e riscos gravíssimos à saúde ante as oportu­nidades de infecções diversas. As áreas de banho e sol convivem com esgoto aberto, com o escorrimento das fezes. Os presos não têm acesso à água, para banho e para hidratação, à alimentação de mínima qualidade. A comida está, muitas vezes, azeda ou es­tragada. Em algumas ocasiões, eles comem com as mãos ou em sacos plásticos. Também não recebem material de higiene básica, como papel higiênico, escova de dentes ou, no caso das mulhe­res, absorvente íntimo.

              O projeto Sistema Prisional em números, criado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (cnmp) e elaborado com base nas visitas do parquet a unidades carcerárias, revelou, entre outros dados, que a taxa de ocupação média dos presídios brasileiros é de 175%. Além disso, entre março de 2017 e fevereiro de 2018, do total de 1.456 unidades prisionais, houve morte de detentos em 474 delas, registros de maus-tratos de funcioná­rios a presos em 81 delas, e em 436 foram registradas lesões corporais.

              Quando o assunto é o número de gente presa nos presídios brasileiros, é indubitável a realidade da superlotação. Para isso, basta ter acesso a registros videofotográficos das celas, frequen­temente divulgados pela imprensa, e perceber que a quantidade de pessoas que as ocupam é muito maior do que a capacidade.

              A maior polêmica surge em relação ao número de detentos acima da quantidade de vagas, uma vez que algumas pesquisas incluem na “população carcerária” os presos em regime semiaberto, em regime aberto e até aqueles que cumprem prisão domiciliar, o que pode macular o propósito científico da pesquisa – a depender do que se pretende demonstrar. Parece inverdade, por exemplo, inter­pretação estatística que considere a influência do número de presos domiciliares e em casas de albergados (regime aberto) no cômputo de presos ocupantes do Sistema Penitenciário Nacional.

              É fato que os regimes semiaberto e aberto ainda possuem estruturas bastante deficitárias. Faltam vagas e até estabelecimentos adequados, como colônias agrícolas, industriais e casas de albergado. Esse é um dos motivos de o preso de um regime acabar ficando em outro, prejudicando as análises quantitativas e, acima de tudo, o escorreito funcionamento do sistema progressivo de penas.

              Uma pesquisa realizada pelo portal de notícias Migalhas revela que em apenas 11 capitais brasileiras os condenados ao regime semiaber­to ficam reclusos exclusivamente em colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos similares. Nas demais capitais, os detentos acabam cumprindo pena em penitenciárias comuns, em casas de albergados, em domicílio ou fazendo uso de tornozeleira eletrônica.

              Essa situação impacta, com certeza, qualquer análise sobre o quantitativo de pessoas reclusas nos presídios brasileiros. Entre­mentes, os dados extraídos de fontes confiáveis não devem ser desprezados. Cabe aos interessados avaliar as estatísticas com cautela, já que podem funcionar como fundamento para a análi­se da crise penitenciária nacional.

              O Monitor da Violência, do portal de notícia G1, por exemplo, mos­tra dados relativos à superlotação carcerária, ao número de presos por agente e ao percentual de presos provisórios em cada estado da federação, mas sem esclarecer se inclui ou não presos domici­liares e dos regimes aberto e semiaberto. O estudo, publicado no início de 2018, aponta haver 686.594 pessoas presas no Brasil, enquanto o número de vagas disponíveis é de 407.309, o que resulta em um percentual de superlotação de 68,6%. Do total de detentos, 236.058 seriam presos provisórios (34,4% da população carcerária).

              O Conselho Nacional de Justiça, em análise mais completa e atu­alizada de relatório mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (cniep), divulga em seu sítio ele­trônico uma espécie de radiografia do Sistema Penitenciário Na­cional (Geopresídios). Consoante os dados, o Brasil possui 2.609 presídios, com 339.483 presos em regime fechado, 117.186 pre­sos em regime semiaberto, 10.789 presos em regime aberto, 246.319 presos provisórios e 6.401 presos em prisão domiciliar, alcançando 720.178 pessoas, sem contar os 3.450 internos em cumprimento de medida de segurança.

              Não por acaso, duas autoridades brasileiras chegaram a compa­rar, em intervalo de tempo relativamente curto, as prisões do país a “masmorras medievais”. Primeiro, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, em 2011, teceu severas críticas ao sistema carcerário brasileiro e comparou algumas pri­sões às “masmorras medievais” (reportagem da Folha de S. Paulo no UOL). Depois, em 2015, o então ministro da justiça José Eduardo Cardozo afirmou categoricamente que os presídios brasi­leiros são “masmorras medievais” (reportagem do Estadão).

              Em que pese tal situação, Bruno Carpes (2018) salienta que os gastos com o aparato penal brasileiro foram reduzidos quase pela metade (49,2%) entre 2006 e 2015, alcançando o Fundo Penitenciário Nacional (funpen) um saldo de R$ 3,5 bilhões para investimento no sistema penitenciário. O contrassenso dessa conduta omissiva do poder público é completamente de­sarrazoado e injustificado, pois, diante de todas as mazelas cita­das, o governo federal simplesmente reteve vultosa quantia por aproximadamente dez anos. Esse paradoxo só começou a mudar em 9 de setembro de 2015, quando decisão do plenário do stf em Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (adpf) 347/df determinou que a União liberasse o sal­do acumulado do funpen para ser utilizado na finalidade para a qual foi criado, vedando-se novos contingenciamentos[5].

              Mesmo assim, consoante notícia do G1 em junho de 2019, uma auditoria do Tribunal de Contas da União, realizada entre maio e no­vembro de 2018, revelou que, quase dois anos após o primeiro repasse obrigatório do funpen, apenas 5,3% dos recursos voltados para a criação de vagas nas prisões foram executados em doze estados do país. A despeito de toda a crise penitenciária brasileira, isso repre­senta um valor não executado da ordem de quase R$ 490 milhões.

              Enquanto parte dos presos sofre constantes violações a seus di­reitos fundamentais, outros utilizam a influência e o poder do crime para auferirem benefícios e regalias durante o cumprimen­to da sua pena. Em total subversão ao espírito de um castigo estatal como consequência da prática delituosa, certos detentos conseguem ter acesso a diversos privilégios no interior de colô­nias agrícolas, industriais e mesmo em estabelecimentos pri­sionais de alta segurança.

              Não são raras as notícias nesse sentido, como evidenciam outras duas reportagens do G1. Em Goiás, durante a operação Regalia, a investigação descobriu que no Presídio de Anápolis alguns presos traficavam drogas e até mantinham um motel nas dependências do estabelecimento. E como se não pudesse piorar, enquanto alguns detentos deveriam estar traba­lhando, saíam para visitar familiares, compareciam a agências bancárias e até frequentavam festas (tudo isso enquanto rece­biam redução da pena pelo falso período laboral na penitenciá­ria). Em outro caso, escutas telefônicas autorizadas pela Justiça identificaram que na Penitenciária de Aparecida de Goiânia e no Presídio Central de Porto Alegre detentos conversavam livremen­te por meio de aparelhos celulares e possuíam acesso à internet. Havia “celas” com televisores de última geração, cozinhas mo­dernas e equipadas com geladeiras duplex e liquidificador, venti­ladores, aparelhos de som, diversos alimentos (eram frequentes os churrascos com carne de primeira qualidade), além da grande circulação de dinheiro no interior dos estabelecimentos.

              Também abundantes são as notícias de regalias a presos acusados ou condenados por crimes de colarinho branco, cujo número aumentou consideravelmente depois da operação Lava-Jato. No Complexo Médico Penal de Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, tanto o Ministério Público Federal quanto a Polícia Federal receberam notícias de que um grupo de políticos, exe­cutivos e lobistas teriam acesso a aparelhos celulares, internet, visitas íntimas diferenciadas, comida exclusiva e até cozinheiro, segurança e zelador particulares (Portal R7). Já no presídio de Benfica, no Rio de Janeiro, as acusações são de regalias ao ex-go­vernador Sérgio Cabral, que teria acesso a uma farmácia de luxo e até a uma espécie de sala de cinema incluindo televisor de 65 polegadas e home theater (notícia do G1 RJ).

              Diante do exposto, fica atestada a falência do sistema peniten­ciário brasileiro, já há muito tempo ineficaz e distante das suas finalidades. Sem o devido reconhecimento do Estado, acaba por re­tirar dele a legitimidade e os possíveis bons frutos que adviriam de um funcionamento adequado ao ordenamento jurídico. Veri­fica-se inquestionável contrassenso entre o que está previsto na lei e o que se encontra na realidade. A conclusão é de que, no Brasil, as penas privativas de liberdade estão sendo executadas de maneira totalmente inadequada.

2. A CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO COMO “ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL”

Não é difícil perceber o paradoxo entre o que está previsto no ordenamento jurídico e aquilo que existe de fato nas penitenciá­rias brasileiras. Tamanha contradição, que se perpetua há vários anos no país, faz que as soluções sejam cada vez mais com­plexas. Em outras palavras, a crise tornou-se tão grande que não é mais só uma “crise”, é um “estado de inconstitucionalidades”.

2.1. O que vem a ser um “estado de coisas inconstitucional”

Antes de saber o que vem a ser, é preciso saber o que não é um “estado de coisas inconstitucional” (eci). Esse é o pon­to fucral para compreensão do instituto, pois pensar que qualquer inconstitucionalidade pode ser encarada como um eci é erro grave, que banaliza o instrumento e prejudica a re­solução de problemas constitucionais.

              Portanto, essa ferramenta constitucional não pode ser confundi­da com os modelos de declaração de inconstitucionalidade ado­tados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Vale dizer: a ação direta de inconstitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e até mesmo a ação direta de inconsti­tucionalidade por omissão não se confundem com o conceito e com a aplicação do eci.

              Inconstitucionalidade, como o próprio termo já revela, é uma evidente contradição entre o texto constitucional e uma norma infraconstitucional, pois, consoante o princípio da supremacia da constituição, a norma de hierarquia inferior deve extrair da lei maior o seu fundamento de validade. Diante da situação em que uma norma infraconstitucional não encontre respaldo lógi­co e normativo na lei constitucional, apenas resta como alterna­tiva a declaração de sua inconstitucionalidade.

              A ação direta de inconstitucionalidade (adi), como revela o ar­t. 102, i, “a”, da crfb/88, destina-se a declarar a contrariedade de leis ou atos normativos federais ou estaduais ao texto constitucional. A diferença em relação ao eci não está, necessariamente, em algum ato normativo, mas sim em situação fática de inconstitucionalidade.

              Em outro giro, há casos de inconstitucionalidade que não se ba­seiam na existência de uma norma contrária aos dizeres consti­tucionais, mas sim na omissão do poder público em concretizar o conteúdo valorativo de determinada norma da constituição. Consoante Gianfranco Faggin Mastro Andréa (2018, p. 1), existem situações em que as deficiências estatais não são meras omissões legislativas que obstaculizam a efetivação de políticas públicas. Decorrem da falta de harmonia e coordenação na atuação de diversos órgãos públicos, “falha estrutural” capaz de impedir ou prejudicar fortemente a concretização e a proteção de direitos fundamentais constitucionalmente previstos.

              A adpf (arguição de descumprimento de preceito fundamental), conforme art. 1º da Lei 9.882/99, trata-se de ação que tem como objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fun­damental resultante de ato do poder público. Para Uadi Lammêgo Bulos, citado por Pedro Lenza (2010, p. 300-301), pre­ceito fundamental diz respeito aos comandos basilares do siste­ma constitucional imprescindíveis à concretização das bases de manifestação constituinte originária.

              Aliás, até caberia interpretação segundo a qual a adpf poderia ser utilizada para sanar a crise do sistema penitenciário brasilei­ro, entendendo-se que a situação dos presídios configura omis­são do poder público que gera lesão a preceitos fundamentais da Constituição, como é o caso das constantes violações a di­reitos fundamentais dos detentos. Porém, mais adequado seria buscar o reconhecimento do eci por meio da adpf, uma vez que a violação a preceito fundamental estaria contida no estado de inconstitucionalidades, que é mais amplo. Foi o que buscou o Partido Socialismo e Liberdade (psol) ao ajuizar a adpf 347/df.

              Todavia, é preciso entender que um eci é diferente de uma adpf. A situação de um eci é mais grave do que de uma adpf, pois há casos desta que não configuram eci. A adpf funciona como instrumento de acesso ao Judiciário (ação constitucional), enquanto o eci, no cenário jurídico-processual brasileiro, é con­ceito teórico de um estado de inconstitucionalidades, e não um instrumento processual propriamente dito.

              Dos modelos de controle concentrado de constitucionalidade, talvez o que mais se aproxime do eci seja a ação direta de incons­titucionalidade por omissão (ado). Segundo a Lei 9.868/99, a ado tem como finalidade sanar omissão quanto ao cumprimen­to de dever constitucional de legislar ou à adoção de providên­cias de índole administrativa (art. 12-B). De acordo com a dou­trina de Pedro Lenza (2010, p. 306), essa ação objetiva combater a famigerada “síndrome de inefetividade das normas constitucio­nais”, também chamada de “doença da omissão administrativa”.

              Não fosse a gravidade do estado em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, seria possível resolver o problema por meio de uma ado, invocando-se a omissão do poder público quanto à adoção de medidas de natureza administrativa. Todavia, a situ­ação das penitenciárias brasileiras é tão grave que já ultrapassou a esfera de abrangência de uma mera ado.

              Nas palavras de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p. 58), muito mais grave do que uma inconstitucionalidade por omissão, no eci encontra-se “uma realidade de massiva e sistemá­tica violação de direitos fundamentais, decorrente da deficiência institucional e estrutural do Estado ou de bloqueios políticos”.

              Se nenhuma das ações de controle concentrado de constitu­cionalidade puder resolver tamanha crise institucional, não é o caso também do mandado de injunção, remédio constitucional de controle difuso existente mais para corrigir a falta de norma regulamentadora que prejudique o exercício de direitos e prer­rogativas (art. 5º, inc. lxxi, crfb/88).

              Azevedo Campos (2016, p. 161) acrescenta que não se trata de simples questão textual, de preciosismos de linguagem – como se o objetivo fosse selecionar a melhor palavra ou o melhor con­teúdo semântico –, mas sim de concreta falta de efetividade de direitos e da distância entre as normas constitucionais e o que se encontra na realidade.

              No que se refere à crise de efetividade de direitos sociais, Ingo Wolfgang Sarlet (2004) ressalta a falta de capacidade do Estado em atender demandas de direitos, o que contribui para a proli­feração da crise de outras necessidades institucionais e pessoais dos cidadãos, levando aos crescentes índices de violência e de ofensa a bens jurídicos fundamentais, como a vida, a integridade física, a liberdade sexual e o patrimônio.

              Por certo, mencionada ineficiência do poder público em con­cretizar direitos fundamentais de caráter individual e social não se resume à crise do sistema penitenciário brasileiro. Simboliza exemplo clássico da discrepância entre o que consta das previ­sões normativas – inclusive de índole constitucional – e a realida­de tão distante do que se vê na prática.

              Azevedo Campos (2016, p. 18-20) ensina que as omissões es­tatais não são apenas violações ao texto constitucional, mas também empecilhos à completa produção de efeitos dos direi­tos fundamentais. Logo, justifica-se a atuação judicial diante da inércia estatal, que implica a necessidade de criação de um ambiente “real, atual e objetivo” de deficiências na tutela de direitos fundamentais e sociais em um “quadro permanente de falhas estruturais”.

              O eci está associado não a simples violações ao texto constitu­cional, mas a um estágio complexo de seguidas omissões, a pon­to de se constatar um quadro permanente de ofensas a direitos e a garantias fundamentais já arraigado na estrutura sistêmica, de difícil solução em razão de envolver atores de diversos órgãos públicos.

              A doutrina do eci teve origem em 1997, na Corte Constitucional da Colômbia, quando o tribunal julgou diversas ações de im­portância nacional e classificou os incidentes como “estados de coisas inconstitucional” em questões previdenciárias de profes­sores, petição dos aposentados, ineficiência administrativa, falta de convocação de concurso público para notários, deslocamento forçado de pessoas, mora no pagamento de aposentadorias.

              O caso mais emblemático, contudo, é o da Sentencia T-153/1998, em que a Corte Constitucional colombiana identificou nas peni­tenciárias do país a ocorrência de violações a direitos fun­damentais (dignidade humana, vida, integridade física e saúde), motivadas pela superlotação dos presídios nacionais. A decisão tornou-se tão famosa que passou a influenciar outros tribunais constitucionais pelo mundo, como o peruano e o brasileiro.

              Esclareça-se que, por se tratar de uma teoria constitucional re­cente, há ainda melhorias a serem empreendidas. A experiência colombiana mostra que o instituto não deve ser banalizado, pois o tribunal do país acabou considerando meras inconstituciona­lidades por omissão como “estado de coisas inconstitucional”. Ademais, as soluções para os casos de eci, como destaca Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p. 244-245), devem ser ob­tidas por meio de “diálogos institucionais”, evitando-se imposi­ções judiciais que tendam a atrapalhar os processos de resolução de graves inconstitucionalidades.

              Durante os anos, então, a Corte Constitucional colombiana identificou erros, amadureceu conceitos e evoluiu em relação ao modo de tratar o eci em sua jurisprudência. Em 2004, no caso do deslocamento forçado de pessoas no território colombiano, Sentencia T-025, o tribunal chegou a estabelecer seis “fatores va­lorados” que funcionam como requisitos para a constatação de um “estado de coisas inconstitucional”:

(i) la vulneración masiva y generalizada de varios derechos constitucionales que afecta a un número significativo de perso­nas; (ii) la prolongada omisión de las autoridades en el cumpli­mento de sus obligaciones para garantizar los derechos; (iii) la adopción de prácticas inconstitucionales, como la incorpora­ción de la acción de tutela como parte del procedimiento para garantizar el derecho conculcado; (iv) la no expedición de me­didas legislativas, administrativas o presupuestales necesarias para evitar la vulneración de los derechos; (v) la existencia de un problema social cuya solución compromete la intervención de varias entidades, requiere la adopción de un conjunto com­plejo y coordinado de acciones y exige un nivel de recursos que demanda un esfuerzo presupuestal adicional importante; (vi) si todas las personas afectadas por el mismo problema acudie­ran a la acción de tutela para obtener la protección de sus de­rechos, se produciría una mayor congestión judicial.

              Azevedo Campos (2016, p. 179-185) prefere falar em apenas qua­tro requisitos para a configuração de um eci: (I) a constatação de violação massiva e contínua de direitos fundamentais afetan­do grande número de pessoas, e não somente um caso de pro­teção deficiente do Estado; (II) omissão constante e persistente das autoridades públicas em realizar suas missões institucionais de defesa e promoção de direitos fundamentais; (III) soluções dependentes de medidas e determinações a um conjunto de ór­gãos, com a responsabilidade sendo atribuída a uma pluralidade de agentes públicos; e (IV) o risco potencial de um número ele­vado de ações judiciais sendo ajuizadas, o que levaria à sobrecar­ga do Poder Judiciário e ao acúmulo de processos.

              Garcia Jaramilo, citada por Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p. 186), diz que a doutrina jurídica do estado de coisas in­constitucional surgiu como uma resposta judicial que tem como objetivo reduzir a distância entre as variadas consagrações nor­mativas e a realidade social de um país desigual.

              Gianfranco Faggin Mastro Andréa (2018, p. 66) define o eci como técnica decisória judicial destinada a superar um estado de “violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fun­damentais, decorrente de ações e/ou omissões em função de bloqueios políticos e/ou institucionais de diferentes autorida­des/órgãos/poderes públicos” capazes de prejudicar um grupo de pessoas em condição de vulnerabilidade.

              Também conceituando o instituto, o jurista Azevedo Campos (2016, p. 187) aduz:

Defino o ECI como a técnica de decisão por meio da qual cortes e juízes constitucionais, quando rigorosamente identificam um quadro de violação massiva e sistemática de direitos fundamen­tais decorrente de falhas estruturais do Estado, declaram a abso­luta contradição entre os comandos normativos constitucionais e a realidade social, e expedem ordens estruturais dirigidas a instar um amplo conjunto de órgãos e autoridades a formularem e implementarem políticas públicas voltadas à superação dessa realidade inconstitucional.

              O estado de coisas inconstitucional, portanto, nada mais é do que um instrumento judicial utilizado em decisões no âmbito do direito constitucional para fins de resolução de uma conjuntura crítica e socialmente relevante, que produz reflexos sobre a vida de diversas pessoas em situação de constante violação de direi­tos fundamentais. Por um lado, cabe ao Poder Judiciário coor­denar, por meio de diálogos institucionais, medidas de atuação solidária dos órgãos responsáveis.

              Por outro lado, há aqueles que não consideram positiva a ideia de importação da técnica decisória do eci para o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Para o jurista Lenio Luiz Streck (2018), o eci significa uma forma de ativismo judicial de aplica­ção por demais abrangente (pode abarcar uma série de problemas estatais, desde aqueles sérios e graves até questões banais do coti­diano) e desnecessária diante da suficiência dos instrumentos pro­cessuais já contidos na crfb/88. O autor reputa a teoria como uma ameaça ao princípio da separação dos poderes. Ele entende que a questão do eci colombiano não se aplica ao Brasil e, tendo em vista que o controle de constitucionalidade tem normas como objeto, não seria juridicamente possível declarar-se a inconstitu­cionalidade de “coisas” ou mesmo de “estado de coisas”.

              Com a devida vênia, as críticas supracitadas não devem prospe­rar. Antes de tudo, é preciso conhecer o histórico e a evolução teórica do eci, pois só então será possível compreender a base filosófica, a juridicidade e as causas sociais que legitimam a exis­tência do instrumento. Não se trata de ativismo judicial desar­razoado, e prova isso a proposta de resolução dos conflitos por meio de diálogos institucionais, sem imposições de um Poder sobre outro, o que desmitifica, ao mesmo tempo, a ideia de vio­lação ao princípio da separação dos poderes.

              Quanto ao uso indiscriminado da técnica do eci, é verdade que durante a história do Tribunal Constitucional colombiano a medida foi usada muitas vezes indevidamente, fator que acabou enfraquecen­do e esvaziando o núcleo de validade da teoria. Contudo, utilização equivocada não é sinônimo de vício da teoria. Isso porque, com aplicação limitada a casos de extrema gravidade, quando estiverem reunidos os pressupostos de fundamentação, o instrumento pode produzir resultados significativos, notadamente em estados de mar­cante desigualdade social e violação de direitos fundamentais.

              A despeito da alegada desnecessidade, o Estado brasileiro convi­veu com a crise no sistema penitenciário durante anos, sem ne­nhuma perspectiva de mudança. E mesmo com todos os alegados “instrumentos processuais”, com todas as ações já existentes, nada foi feito para solucionar esse estado de inconstitucionalidades.

              Apesar desse imbróglio, resta salientar que o que mais tem valor não é a discussão jurídica acerca da aplicação do eci no orde­namento jurídico brasileiro. Ficou evidenciado, até pelo stf, a condição deplorável dos presídios nacionais, há anos repletos de desumanidades e diversas violações a direitos e garantias que de­veriam ser fundamentais. Não faz tanto sentido saber por onde veio a constatação, porque o que verdadeiramente incomoda é verificar as condições em que as penas privativas de liberdade são cumpridas na República Federativa do Brasil.

2.2. A ineficiência das penas privativas de liberdade no Bra­sil: como criticar o que nunca existiu?

A situação em que se encontram as penitenciárias brasileiras deve ser digna de atenção das autoridades do país. É evidente o paradoxo entre o que está determinado no ordenamento jurídico pá­trio e o estado lastimoso das prisões, marcadas pela violação de direitos fundamentais que deveriam ser assegurados a qualquer pessoa, tanto pelo respeito à humanidade quanto pelo dever de proteção à dignidade de cada cidadão.

              Já se passaram mais de 30 anos desde a promulgação da crfb/88 e até hoje não se conseguiu colocar em prática direi­tos mínimos assegurados às pessoas que cumprem penas privati­vas de liberdade no país. A despeito da vasta previsão de direitos e garantias aos detentos, tanto no âmbito constitucional quanto no infraconstitucional, o estado caótico das prisões brasileiras faz parecer que inexistem normas.

              Na realidade, porém, as normas existem. O que se constata é um enorme desrespeito às suas disposições. O poder público quase nada se importa com a população isolada nos presídios. Como se não fossem vidas. As políticas públicas e as destinações orçamentá­rias olvidam a importância das penas privativas de liberdade para o direito penal e, via de consequência, para a sociedade e para o Estado. Chega-se a ponto de perguntar se o que vemos no Brasil são, de fato, penas privativas de liberdade cumpridas no seio de um estado de direito ou se são apenas pocilgas onde os crimino­sos são despejados para ficarem separados das outras pessoas.

              É por isso que a situação do sistema penitenciário do Brasil deve ser vista como um estado de coisas inconstitucional. Aliás, conforme explanação de Gianfranco Faggin Mastro Andréa (2018, p. 152), a nação brasileira é marcada por numerosas e diuturnas violações a direitos fundamentais de grupos vulneráveis, o que evidencia o descompasso entre as promessas constitucionais e a realidade, legitimando-se a existência de um eci.

              Vários setores da sociedade, da mídia e até de estudiosos do direito criticam a pena privativa de liberdade como se fosse ela a responsá­vel pelo caos do sistema penitenciário nacional, e também do pró­prio sistema criminal como um todo. Entretanto, é preciso diferen­ciar a pena privativa de liberdade prevista no ordenamento jurídico da pena privativa de liberdade cumprida nos presídios. Afinal, como restou evidenciado, elas estão longe de ser a mesma coisa.

              No viés do direito comparado, a situação brasileira é semelhan­te àquela encontrada nos presídios colombianos em 1998, época em que a Corte Constitucional do país, por intermédio da mencionada Sentencia T-153, declarou o eci daquele sistema penitenciário. A propósito, Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p. 265) identifica um rol de similaridades entre o contexto colombiano de 1998 e o brasileiro atual: superlotação e insalubri­dade dos estabelecimentos prisionais; torturas; divisão inadequa­da entre os presos; violações a direitos básicos de saúde, alimenta­ção, educação e trabalho; condições desumanas e indignas.

              Diante desse cenário, o Partido Socialismo e Liberdade (psol) ajui­zou a adpf 347/df, com pedido liminar, justamente para buscar o reconhecimento do instituto do estado de coisas inconstitucional em relação ao sistema penitenciário brasileiro, além da adoção de providências estruturais do poder público às alegadas ações e omissões institucionais que têm produzido lesões a preceitos fundamentais das pessoas submetidas a privações de liberdade.

              O stf, como guardião da Constituição (art. 102, crfb/88), reconheceu em decisão liminar do plenário do órgão, em 27 de agosto de 2015, a ocorrência de um eci relativo ao sistema peni­tenciário brasileiro. A ementa ficou redigida da seguinte forma:

Sistema penitenciário nacional – Superlotação car­cerária – Condições desumanas de custódia – Vio­lação massiva de direitos fundamentais – Falhas estruturais – Estado de coisas inconstitucional – Configuração. Presente quadro de violação massiva e persis­tente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e or­çamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser carateriza­do como “estado de coisas inconstitucional”.

              O ministro Marco Aurélio Mello, relator da adpf 347/df no stf, manifestou em seu voto a situação vexaminosa do sistema penitenci­ário brasileiro. Além da violação de diversos direitos fundamen­tais, destacou a falta de trabalho, de educação e de outras ocu­pações do tempo; as barbáries que os presos promovem entre si, os constantes massacres, homicídios, violências sexuais, de­capitações, estripações, estrangulamentos e choques elétricos; o desrespeito a grupos vulneráveis no interior dos presídios; o nú­mero insuficiente de agentes penitenciários; a falta de estrutura e, acima de tudo, a generalidade dos problemas, pois não são ex­clusivos de um ou de outro estabelecimento penitenciário, mas estão presentes em todas as unidades prisionais do país. Mello diz ser necessário reconhecer “a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro”. Destaque-se o seguinte trecho do voto:

Diante de tais relatos, a conclusão deve ser única: no sistema prisional brasileiro ocorre violação generalizada de direitos fun­damentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobser­vância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, confi­guram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se “lixo digno do pior tratamento possível”, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre.

              A adpf 347/df ratifica, pela primeira vez no Brasil, o grave esta­do de crise relativo ao sistema penitenciário nacional. O próprio stf admite que violação grave e sistemática de direitos funda­mentais constitui problema de difícil solução. Além do rela­tor, ministro Marco Aurélio, outros sete ministros reconheceram em seus votos a vigência de um eci no sistema penitenciário brasileiro: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

              A mais alta corte brasileira confirmou a existência de um estado de coisas inconstitucional nas penitenciárias brasileiras. Isso re­presenta um marco na história do sistema de penas privativas de liberdade no país, uma vez que a situação crítica das prisões foi reconhecida e abriu caminho para implantar medidas resolutivas aos problemas constatados.

              Além do Poder Judiciário, urge salientar a posição especializada do jurista Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p. 271) sobre o panorama fático das penitenciárias brasileiras:

Postas as coisas assim, verifica-se, de forma inequívoca, o preen­chimento dos pressupostos de configuração do ECI. Primeiramen­te, o sistema prisional brasileiro revela violação massiva e genera­lizada de direitos fundamentais dos presos quanto à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância da ordem jurídica correspondente pelo Estado, configuram tratamento desumano, degradante, cruel, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas pri­vativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em cruéis e desumanas; os presos tornam-se “lixo digno” do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre.

              Feitas essas considerações, e comprovada a caracterização do sis­tema penitenciário brasileiro como um eci, chega-se à pergunta do título deste artigo: como criticar o que nunca existiu?

              Ora, não faltam críticas à existência de um modelo sancionador de direito penal que ainda utiliza as penas privativas de liber­dade como principal punição. Os críticos baseiam-se nesse estado de falência das prisões para argumentar que o cerceamento de liberdade em presídios é sanção completamente ultrapassada e ineficiente, ainda mais no contexto de um estado de direito.

              O movimento abolicionista, principal modelo de oposição à apli­cação de penas privativas de liberdade no contexto de direito penal da contemporaneidade, tem como maiores expoentes os pensadores Louk Hulsman, Thomas Mathiesen, Nils Christie e Sebastian Scheerer. Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 401) resume os ideais do mo­vimento abolicionista em (I) descriminalização – deixando de con­siderar certas condutas como infrações penais –; e (II) despenaliza­ção, eliminando penas para a prática de algumas condutas, mesmo que continuem a ser consideradas criminosas, sendo estas medidas vistas como soluções para a crise do sistema penitenciário.

              Claus Roxin (2001, p. 2) recorda que o abolicionismo, cujos maiores adeptos são criminólogos europeus, vê no direito penal estatal mais prejuízos do que benefícios. O aparelho repressor do Estado como estratégia não possui a mesma eficiência de mo­delos alternativos, como medidas conciliatórias, indenizações.

              Acontece que essa visão está direcionada a um sistema penal em crise, caracterizado pela existência de penas privativas de liber­dade ineficientes, que não respeitam as normas que lhes dão suporte. Diante das circunstâncias do direito penal brasileiro, é até fácil criticar o modelo de penas privativas de liberdade, já que suas deficiências expressam claramente a falência de tais sanções.

              Não há notícias, no Brasil, da existência de um modelo ideal de execução da pena privativa de liberdade. E quando se diz ideal não se está buscando um sistema perfeito, mas algo que, pelo menos, seja capaz de respeitar as disposições mínimas de digni­dade dos detentos, até porque o que se restringe na aplicação de tais sanções é a liberdade, e não aspectos de humanidade.

              A conclusão óbvia é que não se pode criticar o que nunca existiu. Em outras palavras, não se pode dizer que a culpa da crise vivida pelo direito penal brasileiro é das penas privativas de liberda­de em si mesmas. Afinal, em que pese o estágio deplorável das penitenciárias do país, o Estado e a sociedade reconhecem que há uma parcela de infrações penais que só será adequadamente reprimida com punições desse tipo.

              O principal ponto, contudo, é que só se poderia afirmar cabal­mente que as penas privativas de liberdade não são úteis ao di­reito penal, e que constituem modelo anacrônico de sanção, se o Estado tivesse sido capaz de criar e manter penitenciárias com uma estrutura geral condizente com as disposições normativas e, a partir de então, ficasse comprovado o fracasso do sistema.

              Se os direitos e as garantias previstos na crfb/1988, no cp e na lep não são regularmente assegurados aos detentos, o estado é de notória inconstitucionalidade. Isto a que se tem costumado chamar de prisão, como se fosse o local exato em que o ordena­mento jurídico determinou o cumprimento de penas privativas de liberdade, na verdade é uma deturpação estatal do sentido da pró­pria lei. Neste locus horrendus não pode haver pena ideal, pois faltarão condições mínimas para que o infrator tenha, pelo menos, oportunidade de ser reeducado. E mais: ainda que se pensasse no absurdo de ser o presídio um lugar onde os condenados apenas pagam por seus delitos (aspecto retributivo) e se evita a ocorrência de novos crimes (aspecto preventivo), estariam os estabelecimentos prisionais brasileiros em falha constante, pelas reiteradas e grotescas violações a direitos fundamentais.

              Cumpre lembrar as lições de Michel Foucault (1997, p. 110) ao dizer que a ordem nas cadeias “pode contribuir fortemente para regenerar os condenados”, ao passo que problemas na educação dos detentos, maus exemplos disseminados e ociosidade contri­buem para o surgimento de crimes.

              O que esperar de um sistema penitenciário caracterizado pela desordem? Evidentemente, a resposta é a proliferação dos maus exemplos, das condutas nefastas, dos atos deletérios praticados do lado de fora das penitenciárias, que, nesse contexto, conti­nuarão sendo executados no interior dos presídios e, se houver oportunidade, também fora deles.

              A crise do sistema penitenciário não está na existência e na apli­cação de penas privativas de liberdade, já que elas são necessá­rias e adequadas a determinadas espécies de delito. A verdadeira raiz do problema é o tratamento dado pelo Estado às penitenci­árias brasileiras, pois o poder público, em uma postura incoerente, de completo descaso, vem há muitos anos ignorando esse “esta­do de coisas inconstitucional”.

              Viram-se as costas ao cerne do problema. Presos cumprem suas pe­nas em locais absolutamente inapropriados, onde sofrem todo tipo de violação a direitos humanos fundamentais, enquanto a socieda­de, sem compreender integralmente o problema, sofre as consequ­ências de um direito penal cada dia menos legítimo e convive com as mazelas de um país violento, corrupto, desigual e desumano, que parece não conseguir identificar nem resolver crises.

2.3. Alternativas à crise do sistema penitenciário brasileiro

É neste cenário de completo caos que se torna possível identificar novas ideias para solucionar – ou, pelo menos, reduzir – a crise existente na infraestrutura das prisões brasileiras. O ponto inquestionável é o fato de as penas privativas de liberdade serem totalmente desvirtuadas pelo poder público, pois o que se vê na realidade dos estabelecimentos prisionais está extremamente distante dos parâmetros legais e constitucionais, ficando constatado um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. As divergências surgem quanto ao modelo ideal para solução do problema.

              Há de se ressaltar, antes de tudo, apesar das críticas recebidas, que as penas privativas de liberdade ainda possuem inegável proeminência para o direito penal. Certos tipos de delito e certos perfis de criminosos só podem ter resposta adequada por meio de sanções rígidas, capazes de retribuir o mal causado e prevenir novas infrações penais.

              Não se duvida de que o direito penal possui, na maior parte dos casos, função repressiva. E quando assume papel preventivo de desencorajar as pessoas a praticarem delitos com base na aplica­ção de uma pena em abstrato, seus efeitos são pequenos diante de outras estratégias mais eficazes que podem ser adotadas pelo poder público, principalmente investimentos de longo prazo. Por isso é sempre lembrada a frase de Cesare Beccaria (2001, p. 199) segundo a qual “o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a educação”.

              Obviamente, investimentos sociais em educação, trabalho, sanea­mento básico e redução das desigualdades sociais trazem frutos mais sólidos para o Estado (mesmo que demorem certo tempo). Todavia, não se pode negar papel considerável do direito pe­nal nas atividades estatais de segurança pública, difusão de va­lores e manutenção dos padrões morais cultivados pela maioria da sociedade. Aqui, cabe uma frase muito lembrada de Cesare Beccaria (2001, p. 117): “O melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável”.

              Grande parte dos recursos orçamentários do Estado deveria em médio e longo prazos mudar a realidade de muitas pessoas e tra­zer verdadeiro desenvolvimento nos aspectos social, econômico e cultural, além de ter consciência de que investimentos consi­deráveis em boas estratégias de política criminal são necessários.

              Por muito tempo o poder público ignorou os presídios brasileiros e as pessoas que os ocupam. A despeito do caos existente, o Brasil chegou ao absurdo de permitir o contingenciamento de bilhões de reais do funpen, entre 2006 e 2015. O Estado desistiu de fazer algo para resolver ou amenizar o problema da infraestrutura pri­sional, enquanto a situação se agravava cada vez mais.

              O sistema prisional nunca foi prioridade. Sem a devida atenção das autoridades, superlotação carcerária e violação a direitos funda­mentais, formou-se uma bola de neve, de solução complexa, cha­mada de estado de coisas inconstitucional das prisões. O poder pú­blico jamais pensou que investir no sistema penitenciário e adequar o cumprimento das penas privativas de liberdade pudesse trazer benefícios consideráveis à sociedade, como redução da violência e melhoria da qualidade de vida das pessoas. Ledo engano.

              Se o país tivesse um sistema prisional mais bem estruturado, em conformidade com as normas de execução penal, o número de gente que teria a oportunidade de passar por uma ressocializa­ção eficaz seria muito maior, assim como a finalidade para a qual foi criada a pena privativa de liberdade corrigiria os apenados, preveniria novos delitos e os reeducaria. Provavelmente nem to­dos os criminosos seriam transformados, mas é evidente que as condições propícias de um ambiente salubre e humano contri­buiriam sobremaneira para permitir a mudança de um número considerável de pessoas.

              No artigo “Prisão, uni­versidade do crime?”, o jurista Edilson Mougenot Bonfim (2018)defende que, apesar das lastimáveis condi­ções do cárcere brasileiro, no qual é indubitável a necessidade de melhorias para fins de garantia de direitos fundamentais, ele ain­da pode funcionar para algumas pessoas como local de mudança e de transformação. Afinal, o “mesmo fogo que endurece o ovo derrete a manteiga”. Logo, advertidos e redimidos pelo castigo da prisão, alguns detentos podem utilizar a oportunidade para deixar de lado as práticas criminosas e adotar uma vida diferente.

              Nem mesmo alguns defensores do abolicionismo descartam a pena de prisão, apesar de a manterem destinada a um plexo reduzido de comportamentos desviantes. Claus Roxin (2001, p. 2), no artigo em que indaga se tem futuro o direito penal, afirma – partindo do pressuposto de que a criminalidade vai sempre existir – que ainda no futuro haverá espaço para a existência e para a aplicação de um direito sancionador.

              O direito penal não pode deixar de utilizar penas privativas de liberdade em seu papel regulamentar e punitivo. Ainda que se permaneça discutindo em quais infrações o Estado deva impor ao condenado tamanha restrição à sua liberdade, sempre haverá crimes para os quais não parecerá razoável aplicar medidas alter­nativas como forma de reprimir e prevenir o delito, assim como reeducar o delinquente.

              Em crimes violentos como homicídios (art. 121, cp), latro­cínios (art. 157, § 3º, ii, cp), extorsões mediante sequestro com resultado morte (art. 159, § 3º, cp) e infrações penais demasiadamente prejudiciais à sociedade como os delitos de corrupção, a espécie de pena que melhor reúne os requisitos de necessidade e adequação é aquela cumprida em estabelecimen­tos prisionais, justamente por ser ela a mais necessária e a mais adequada à retribuição do mal causado pelo crime, à prevenção de novas infrações penais e à possível reeducação do infrator.

              Cesare Beccaria (2001, p. 89) diz que o rigor das penas deve ser correspondente ao estado em que se encontra a nação, devendo o Estado aplicar penas mais rigorosas para conter o povo que esteja em “estado selvagem”. Essa ideia significa que não adianta tratar uma sociedade voltada para o crime de maneira branda, com penas que produzam pouco efeito negativo sobre o crimi­noso, sem compatibilidade com o nível de dano gerado pelo de­lito ou com o grau de insatisfação do Estado e dos demais inte­grantes da comunidade ante a ocorrência de uma infração penal.

              Como ensina Virgílio Afonso da Silva (2002, p. 39-40), o ato puniti­vo estatal, em sentido amplo, só é justificável quando for capaz de promover um benefício maior do que o dano causado pela restri­ção a um direito fundamental. Esse constitucionalista, ao examinar o princípio da proporcionalidade, ressalta que o ato estatal somente será necessário se a realização do objetivo pretendido não se pu­der alcançar, de maneira diversa, com a mesma intensidade e com menor restrição ao direito fundamental atingido.

              A visão moderna do princípio da proporcionalidade vem confirmar esse raciocínio, pois a correta leitura da norma indica que ser proporcional não é apenas evitar excessos, mas também coibir deficiências. Silva (2002, p. 27) salienta que no passado se utilizava apenas o termo alemão Übermaßverbot, que significa proibição de excesso, enquanto há algum tempo se adota também o vocábulo Untermaßverbot, que pode ser traduzido como proibição de insu­ficiência. Tomando por base tal raciocínio, verifica-se que o Estado, ao agir para combater crimes e punir delinquentes, não poderá ser excessivo assim como não poderá atuar de modo deficiente.

              Quando o poder público deixa de responder adequadamente à ocorrência de crimes, os valores sociais sofrem desgastes, tornando a con­vivência harmônica entre as pessoas assaz ameaçada. Não por acaso, o Estado assume a proteção a seus cidadãos, já que a segu­rança pública figura como dever dele e direito de todos (art. 144, crfb/88), assim como a segurança é tida como direito humano, fundamental e inviolável (art. 5º, crfb/88).

              Nessa linha de pensamento, vários autores defendem a necessi­dade de penas privativas de liberdade nos agrupamentos huma­nos, mormente em sociedades nas quais os crimes ainda são tão numerosos, violentos e deletérios ao desenvolvimento nacional. Conforme a Transparência Internacional, o Brasil ocupou, em 2017, a 96ª posição entre os países corruptos no setor público, embora tenha caído 17 posições em relação a 2016 e sustentado pior posição desde 2014. Ademais, o Brasil registra aproximada­mente 62 mil homicídios por ano (marca cerca de 30 vezes supe­rior à da Europa), conforme dados divulgados pelo Ministério da Saúde no Atlas da Violência 2018.

              Michel Foucault (1997, p. 110), apesar de reconhecer que as pe­nas privativas de liberdade por vezes podem ser perigosas e até inúteis, trata a prisão como “detestável solução de que não se pode abrir mão”. Por sua vez, Edilson Mougenot Bonfim (2018) aduz que “sociedade alguma, em tempo algum, pode abrir mão dessa ‘detestável solução’ que para muitos casos a prisão repre­senta”. Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2014, p. 238) esclarecem que, a despeito dos inconvenientes nos aspec­tos educativos e reeducadores, a prisão ainda é o “único recurso aplicável para os delinquentes de alta periculosidade”.

              Até a Exposição de Motivos 211, que tratou das altera­ções empreendidas na parte geral do Código Penal, ratificou a pena privativa de liberdade como resposta penal básica ao delito em todo o mundo, inclusive no Brasil. O que se debate é tão somente a li­mitação dos casos em que deve ser reconhecida a sua necessidade.

              Jesús-María Silva Sánchez (2004, p. 6-7), ao tratar da eficiência em direito penal, obtempera que esse ramo não deve perseguir, ne­cessariamente, condutas que tragam vantagens para todos e não prejudiquem ninguém. O ideal é que a imposição de penas tra­duza a reunião de vantagens sociais que superem seus custos, até porque o fato de o delinquente suportar aspectos negativos como consequência da sua conduta infracional é medida de justiça.

              Apesar da superlotação dos presídios, são frequentes as acusações de que o Poder Judiciário brasileiro utiliza por demais a prisão tan­to como pena quanto por medida processual, em prisões provisó­rias e preventivas. As 702.988 pessoas presas (excluídos os presos em regime aberto e em regime domiciliar, e incluídos os presos provisórios) é fruto de uma política criminal que aplica a prisão em casos desnecessários ou inadequados, ou esse número é ele­vado porque a quantidade de crimes que merecem a aplicação de prisão é realmente elevada no Brasil – o que parece mais racional, diante da realidade vista nas ruas e nos noticiários da mídia?

              Ora, em um país com tanta desordem e violência, marcado pela alta ocorrência de crimes brutais, como homicídios e latrocínios, e ainda a vexaminosa frequência de casos de corrupção tanto no setor público quanto no setor privado, bem como as consequên­cias deletérias de tal prática para a sociedade, estranho seria se o Brasil prendesse pouco.

              A alta quantidade de pessoas submetidas a penas restritivas de liberdade – por condenação criminal ou por força de prisões processuais – é justificada exatamente por conta do número ainda maior de crimes que vêm acontecendo no país (isso porque muitos deles acabam impunes, alguns sequer chegam a ser in­vestigados, outros geram absolvições por falta de provas, outros prescrevem, outros recebem penas substitutivas, e, no final, sobra um percentual para aplicação de penas privativas de liberdade muito menor do que o montante de delitos praticados).

              O Brasil não prende demais; ao contrário, prende de menos. Alexandre Abrahão e Marcelo Rocha Monteiro (2018) afirmam que há muitos sofismas a respeito das expressões “encarceramento excessivo”, “prisões preventivas desnecessárias” e “não aplicação de penas alternativas”. Melhor seria a expressão “impunidade em excesso”. Isso porque a questão precisa ser analisada com um olhar mais crítico, que considere, por exemplo, que o Brasil é um dos países que mais matam (e do total de homicídios e de latrocínios ocorridos anualmente, apenas 8% são apurados, o que resulta em mais de 55 mil autores de crimes que sequer são identificados). Além disso, há de ser levado em conta o alto número de benefícios penais e processuais aplicados a pesso­as condenadas, como é o caso de substituições de penas, pro­gressão de regime, saídas temporárias, entre outros. Portanto, a superlotação carcerária não é fruto do “excesso” de pessoas presas, mas sim da falta de vagas e de investimentos no sistema penitenciário nacional. O grande problema não é a existência das prisões, mas sim o tratamento conferido a elas pelo Estado.

              A sociedade brasileira anseia por um Estado capaz de oferecer segurança pública, e isso passa, necessariamente, por aumen­to de investimentos na infraestrutura das prisões. Não é preciso penalizar por meio de prisões desumanas, que não contam com ambientes salubres e dignos. Como dizia Michel Foucault (1997, p. 6), a certeza da punição gera nas pessoas um sentimento de observância da lei muito maior do que aquele gerado por casti­gos abomináveis e teatrais.

              Jesús-María Silva Sánchez (2013, p. 189-190) compreende que a vontade popular não está voltada nem para um “direito penal mí­nimo” (tolerante, brando e demasiadamente garantista) nem para um “direito penal máximo” (cruel, opressor, vingativo e demasia­damente rígido), visto que o ideal é um direito sancionador que seja ao mesmo tempo funcional e suficientemente garantista.

              O filósofo grego Aristóteles (1991, p. 38) ensina que a virtude “é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo”. Essa lógica faz acreditar que a virtude para o sistema penitenciário brasileiro está no meio­-termo entre o direito penal mínimo e o direito penal máximo, porque não há espaços para radicalismos sancionadores. Não cabe ao Estado atuar como vilão que persegue sem escrúpulos e pune sem humanidade, assim como não lhe cabe agir como um tipo de “mãe” que “passa a mão”, acoberta, ignora e pune de modo deficiente certas condutas delituosas.

              Da mesma maneira, Ingo Wolfgang Sarlet (2004), ao tratar de constituição e proporcionalidade, afirma:

Salta aos olhos que entre o extremo do abolicionismo desen­freado (que, aliás, não integra a pauta genuinamente garantista) ou mesmo um minimalismo unilateral e cego, que não faz jus a um sistema de garantias negativas e positivas tal qual exige o Estado Democrático de Direito comprometido com os direitos fundamentais de todas as dimensões, e um sistema de interven­ção máxima na esfera penal, há que relembrar constantemente que também o Estado Democrático de Direito (e, portanto, o sis­tema jurídico estatal) haverá de atuar nos limites do necessário à consecução dos seus fins primordiais, dentre os quais assume destaque a proteção e promoção da dignidade da pessoa huma­na de todos os integrantes da comunidade.

              Preocupar-se com a dignidade humana é olhar tanto para o direito fundamental à segurança pública, que deve ser garantido à socie­dade, quanto para os direitos humanos fundamentais, que devem ser garantidos aos detentos. O que se tem observado, todavia, é um Estado que ignora ambos e, por isso, mostra-se completamente ineficiente no exercício do seu papel de titular do direito de punir.

              Conforme Edilson Mougenot Bonfim (1997, p. 182), é preciso defender o encarceramento em condições adequadas ao cumpri­mento da pena com dignidade e humanidade, por intermédio de prisões compatíveis com a Lei de Execução Penal, ao contrário dos abusos a direitos observados nos estabelecimentos prisionais. Esse autor ratifica a importância da pena privativa de liberdade cumpri­da segundo as políticas humanitárias, sem misturar detentos pri­mários e reincidentes, praticantes de crimes diversos, e, da mesma maneira, insiste na manutenção da pena restritiva de liberdade como instrumento de punição e prevenção segura e consistente.

              É indubitável a necessidade de investimentos no sistema peniten­ciário brasileiro. Não haverá resolução da crise sem que o Esta­do atente para a dimensão das penas privativas de liberdade, destinando recursos orçamentários para essa causa e passando a tratar as disposições normativas como comando impositivos, e não como simples folha de papel.

              Quanto mais de perto a infraestrutura das prisões brasileiras re­fletir as disposições do ordenamento jurídico, maior será a efi­ciência das penas privativas de liberdade. Tal espécie de pena foi pensada, estudada, planejada para produzir efeitos positivos para a sociedade e para o Estado. É ilógico esperar que os estabe­lecimentos prisionais brasileiros, com as condições deploráveis citadas ao longo deste trabalho, alcancem os resultados teóricos para os quais foram idealizados.

CONCLUSÃO

As leis existem para regular o funcionamento da sociedade e para proteger bens jurídicos. Com o passar dos anos, os siste­mas normativos foram evoluindo e o direito alcançou padrão científico. A partir de então, o Estado assumiu a exclusividade da função jurisdicional e passou a adotar um complexo de normas para manter sua soberania e a ordem social.

              No caso da lei penal, o objetivo é proteger os bens jurídicos mais relevantes da sociedade e ter a seu dispor modelos sancionado­res que causem severas consequências a quem descumprir o pa­drão imposto pelo Estado. Evidentemente, trata-se de uma regra de justiça, pois o mal do crime gera prejuízos às vítimas e, por via de consequência, o delinquente deve receber o mal da pena.

              As evoluções histórica e cultural da humanidade evidenciam que o Es­tado não precisa utilizar penas cruéis e indignas para impor a força das suas normas. Melhor do que punir com força desproporcional, por meio de sanções desumanas e atrozes, é punir com certeza, sem permitir que a impunidade seja constante no corpo social e gere a ideia de que as infrações não são punidas como deveriam.

              O poder público deve ser capaz de impor penas que sejam ao mesmo tempo humanas e eficientes, preocupando-se com a dig­nidade das pessoas e também com a segurança da sociedade, pois não se pode permitir que os indivíduos dispostos a delin­quir entendam que o crime compensa. Ao realizar cálculos de eficiência, espera-se que o criminoso chegue sempre à conclusão de que o crime não vale a pena.

              As penas privativas de liberdade assumem grande latitude na evolução histórica das sanções, visto que simbolizam a transição das penas de castigos corporais e capitais para a razoabilidade de uma repreensão que penaliza o infrator com a restrição da sua liberdade pelo tempo que se entende necessário para retribuir o mal do crime, prevenir novos delitos e ressocializar o infrator.

              Há espécies de crime e tipos de criminosos que só podem ser repreendidos de maneira adequada pela aplicação de uma pena que restrinja a liberdade. É o caso de delinquentes com alta pe­riculosidade e de praticantes de infrações penais violentas ou demasiadamente prejudiciais ao desenvolvimento social, como os crimes de corrupção.

              Acontece que uma pena privativa de liberdade, para produzir os efeitos que dela são esperados, precisa existir e funcionar em con­formidade com as disposições contidas no ordenamento jurídico. Muito se evoluiu para chegar ao modelo de prisões hodierno, e por isso sua concepção não pode ser desprezada pelo Estado. A imposição de sanções em estabelecimentos prisionais depende da garantia de proteção dos direitos fundamentais do condenado, e o atingimento das funções da pena depende também da razoabilida­de e da humanidade da prisão. Não se pode esperar ressocialização (reeducação) e prevenção (notadamente a especial) daqueles que são tratados como animais em presídios insalubres e desumanos.

              O Estado, na condição de “deitado eternamente em berço esplên­dido”, afundou-se em reiteradas omissões no que se refere à infra­estrutura do sistema prisional, cuja política de leniência e procras­tinação resultou em uma crise vexatória, produtora de diuturnas humilhações aos detentos, bem como de crassa ineficiência das fun­ções sociais da pena privativa de liberdade.

              Diante de tudo isso, o stf reconhece o estado de coisas inconsti­tucional do sistema penitenciário brasileiro, ratificando que o pro­blema é muito mais grave do que pensava a administração pública. Não se trata de mera proteção deficiente, mas de um quadro de vio­lações massivas e frequentes a direitos fundamentais, cuja solução passa a ser dependente de diversos órgãos e instituições.

              Cabe às penas privativas de liberdade e ao próprio direito penal mos­trar que o Estado está em pleno funcionamento, com soberania e com ordem, punindo adequadamente os delinquentes que desafiam a segurança pública. Do contrário, estará implantado no país um am­biente mais do que propício à proliferação de crimes, partindo-se de um pressuposto segundo o qual o poder público adota a impunidade e não zela pelo cumprimento das funções justificadoras da pena.

              Todavia, as penas privativas de liberdade só serão idôneas aos efei­tos que delas se esperam quando as prisões estiverem dotadas da infraestrutura sobre a qual foram planejadas. Para produzir os fins é preciso fornecer os meios.

              Uma das maiores injustiças do direito penal contemporâneo é teóricos e críticos brasileiros afirmarem que a pena de prisão está ultrapassada, sem atentarem para, pelo menos, duas impropriedades incontestáveis. A primeira é que o modelo que se tem chamado de prisão está dema­siadamente distante do que foi previsto no ordenamento jurídico. A segunda é a de não fornecerem uma medida alternativa que solucione o problema. Apontam-se numerosos inconvenientes da prisão, mas nin­guém consegue dizer o que o Estado deveria utilizar em seu lugar.

              A crise do sistema penitenciário brasileiro, e até a constata­ção da existência de um estado de coisas inconstitucional nos presí­dios do país, permite a pergunta: como criticar o que nunca existiu?

              Espera-se que o Estado brasileiro, principalmente depois da constata­ção de que seu sistema penitenciário se encontra em estado de coisas inconstitucional, altere drasticamente o modo de tratar a política crimi­nal relativa às penas privativas de liberdade. Quando o poder público for capaz de fornecer à sociedade prisões compatíveis com as normas constitucionais e legais, então será possível constatar, de fato, como funcionam e quais são os efeitos das penas privativas de liberdade.

FICHA TÉCNICA // RevistaBonijuris Título original: A caracterização do sistema penitenciário brasileiro como “estado de coisas inconstitucional”: como criticar o que nunca existiu? Title: The characterization of brazil’s prison system as an “unconstitutional state of affairs”: how to criticize what has never existed? Autor: Huston Daranny Oliveira. Servidor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. Ba­charel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Cla­ros. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade In­ternacional Signorelli. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá, em parceria com o Complexo de Ensino Renato Saraiva. Resumo: A situação em que se encontram as penitenciárias brasileiras deve ser digna de atenção das autoridades do país. É evidente o paradoxo entre o que está determinado no ordenamento jurídico pátrio e o estado lastimoso das prisões, marcadas pela violação de direitos fundamentais que deveriam ser assegurados. O sistema penitenciário brasileiro caracteriza-se como um “estado de coisas inconstitucional”, o que foi confirmado pela mais alta corte brasileira, o que abre caminho para implantar medidas resolutivas aos problemas constatados. Somente quando o poder público for capaz de fornecer prisões compatíveis com as normas constitucionais será possível constatar, de fato, como funcionam e quais são os efeitos das penas privativas de liberdade. Palavras-chave: sistema penitenciário; estado de coisas inconstitucional. Abstract: The situation in which Brazilian prisons are in need of attention from the country’s authorities. The paradox between what is determined in the national legal system and the pitiful state of the prisons, marked by the violation of fundamental rights that should be guaranteed, is evident. The Brazilian penitentiary system is characterized as an “unconstitutional state of affairs”, which was confirmed by the highest Brazilian court, which opens the way to implement measures to resolve the problems found. Only when the government is able to provide prisons compatible with constitutional rules will it be possible to verify, in fact, how they work and what are the effects of custodial sentences. Keywords: prison system; unconstitutional state of affairs. Data de recebimento: 17.12.2020. Data de aprovação:  08.02.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 2 – #669 – abr./maio 2021, págs …, Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, issn 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

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NOTAS

[1] As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a oito anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a quatro anos e não exceda a oito, poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

[2] As contravenções penais previstas no Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941, podem ser entendidas como infrações de natureza penal dotadas de menor ofensividade, causando menores prejuízos às vítimas e ao próprio Estado. De acordo com o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, considera-se contravenção “a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.

[3] Conforme o relatório: “nas cadeias femininas, nem mesmo absorvente higiênico ou remédios para cólicas estão disponíveis. Se a menstruação for acompanhada de dor, não há remédio, a não ser reclamar. Quanto aos absorventes, quando são distribuídos, são em quantidade muito pequena, dois ou três por mulher, o que não é suficiente para o ciclo menstrual. A solução? As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os usam como absorvente.

[4] De acordo com o relatório: “a superlotação, a falta de estabelecimentos adequados e a carência de técnicos são as principais causas do caos na classificação e na separação dos presos brasileiros. Infelizmente, presos de baixa periculosidade são misturados a monstros de carreira e têm tão somente duas opções: a submissão à exploração ou a agremiação com os movimentos prevalecentes”.

[5] Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 – Distrito Federal.

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