Alcione Miranda Barbosa ADVOGADA
COM A REGULAMENTAÇÃO DA NOVA COMBINAÇÃO FAMILIAR, SURGEM DÚVIDAS A RESPEITO DA LEGITIMIDADE E PROPORCIONALIDADE DA QUOTA HEREDITÁRIA
Até o fim do século 20, poucas discussões existiam a respeito da sucessão legítima no Brasil. Porém, a volatilidade das interações sociais faz com que o direito se transforme para abarcar os novos modelos que surgem diariamente em nossa sociedade. Não foi diferente com o conceito de vínculo parental.
Em 2016 o Supremo Tribunal Federal permitiu a regulamentação registral de família multiparental com, por exemplo, dois pais e uma mãe ou um pai e duas mães, fato recente que merece atenção especial da ciência jurídica, principalmente por não haver nenhuma lei que observe os efeitos desse instituto.
Com o advento da multiparentalidade, direito adquirido da combinação das cláusulas abertas com o fenômeno da constitucionalização, também surgiram novos direitos e garantias fundamentais voltadas à entidade familiar, gerando vários efeitos no parentesco, como nome, obrigação alimentar, guarda, visitas e principalmente no campo do direito sucessório.
A multiparentalidade constitui inovação singular no contexto social vivenciado atualmente no Brasil, com o surgimento de um novo conceito de família, propiciando a discussão acerca de sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro e de sua sistematização como mecanismo hábil para a validação do princípio da dignidade da pessoa humana, primando pela prevalência do afeto como requisito indissociável das relações familiares em suas multiformas.
Com a carta magna de 1988 e o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, a família deixou de ser um núcleo econômico e de reprodução e se tornou um espaço de amor e de afeto. O princípio da afetividade, juntamente aos princípios da solidariedade, da paternidade responsável, da igualdade entre os filhos, sustentados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, mudaram a nova configuração da família, com novas estruturas parentais, incluindo a socioafetividade.
Desse modo, tendo em vista a ausência de regulamentação legislativa quanto ao tema, a presente pesquisa se propõe a discutir a multiparentalidade e seus efeitos sucessórios no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente diante da omissão do direito em acompanhar uma situação social há muito tempo vivenciada no Brasil.
1. A FAMÍLIA ONTEM E A FAMÍLIA HOJE
O direito de família é o ramo do direito que trata das relações de pessoas unidas por vínculo de consanguinidade, afinidade ou afetividade.
Na Roma antiga, o poder familiar era exercido pelo pater potestas, figura masculina, a quem os constituintes familiares (esposa, filhos, escravos e servos) deviam toda a reverência. A família era tradicionalmente constituída pelo matrimônio de um homem e uma mulher com intuito procriatório, aliança que perdurava até a morte de um dos cônjuges, de modo que sempre deveria existir um varão para cultuar os antepassados, pouco importando se havia afeto entre os envolvidos. Sendo assim, a adoção teve importante papel, diante da ausência de filho (homem) biológico do casal, uma vez que não eram reconhecidos os havidos de relações extraconjugais (VENOSA, 2008).
A Constituição Federal de 1988 foi um divisor de águas na normativa familiar, pois o seu art. 226, caput, dispõe que a família é a base da sociedade, merecendo proteção especial do Estado, reconhece a união estável como entidade familiar no § 3º e a família monoparental no § 4º. No art. 227, § 6º, assegura que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
É fato que com o passar dos anos, o conceito de família ficou mais amplo, abrangendo não só a família tradicional, constituída pela celebração solene do casamento, mas também outras modalidades de entidade familiar pautadas na liberdade de escolha, de estilo de vida, como a união estável, a monoparental, constitucionalmente previstas e contempladas na legislação infraconstitucional.
Nesse contexto, observa-se que a família ganhou uma conotação sistêmica, formada por subsistemas, tratando-se de um sistema aberto constituído por membros que interagem entre si. O núcleo familiar produz uma sinergia que potencializa o somatório das funções dos indivíduos, pois se trata de uma estrutura sistêmica, complexa. Nesse sistema, os envolvidos (a família) mantêm uma relação de interdependência com objetivo de proteção psicossocial, acomodação e transmissão de uma mesma cultura a todos os seus membros. Por ser um sistema aberto, a família é um sistema dinâmico, em constante mudança e transformação, em conformidade com a evolução da sociedade, na qual surgiram novos modelos de família, novas organizações familiares com variação na estrutura, na dinâmica, na cultura, nas relações; propiciou a evolução do conceito de família, tornando-a mais complexa de compreender, de analisar (DIAS, 2011).
Em 2011, utilizando-se de uma interpretação sistêmica entre Constituição Federal e Código Civil, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento conjunto da ADPF 132/RJ e da ADI 4.277/DF, decidiu que é possível haver união estável entre pessoas do mesmo sexo, formando uma entidade familiar, equiparando a união estável entre homem e mulher à união estável homoafetiva. Com esse arranjo familiar, tornou-se possível o casamento de pessoas do mesmo sexo, em 1º de fevereiro de 2012, por meio de decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial (RESP) 1.183.378/RS, o que conduziu à edição da Resolução 175/13, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual veda a recusa de cartórios de registro civil de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Atualmente, as famílias têm uma formação muito diferente daquela que existia até o século 19, sendo possível encontrar famílias compostas por três mães1 ou mesmo três pais.
Foi consagrada a multiparentalidade na tese de Repercussão Geral 622/STF: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, o que proporcionou a desbiologização da paternidade, abrindo as portas do sistema jurídico brasileiro para a pluriparentalidade. Esta tese foi materializada pelo Provimento CNJ 63/17, o qual possibilita o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva de maneira simplificada.
Sendo assim, hoje, somente os laços sanguíneos não são suficientes para sustentar a paternidade ou maternidade. O sustento nas relações está no afeto e nas relações psíquicas que se criam pela afetividade.
2. AFETIVIDADE COMO FATOR IMPULSIONADOR DA MULTIPARENTALIDADE
A carta magna de 1988 reconheceu diferentes formas de constituição familiar, abrindo caminho para novos padrões de entidade familiar, agora com preocupações voltadas às realizações individuais dos integrantes do núcleo familiar, valorizando a afetividade, de maneira que o caráter matrimonial e essencialmente patrimonial da família de outrora, construída na vigência do Código Civil de 1916, perdeu força.
Diante do princípio da afetividade e da igualdade entre todos os filhos, vedadas quaisquer designações discriminatórias entre eles, o afeto passou a ser juridicamente relevante. Ressalte-se que o afeto não possui o mesmo significado da psicologia ou da filosofia, pois no âmbito jurídico o afeto é demonstrado por condutas cotidianas e não pelo sentimento em si.
Sob esse prisma, Tartuce (2017) descreve o valor jurídico do princípio da afetividade:
Apesar da falta de sua previsão expressa na legislação, percebe-se que a sensibilidade dos juristas é capaz de demonstrar que a afetividade é um princípio do nosso sistema. Como é cediço, os princípios jurídicos são concebidos como abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais.
Nesse contexto, Diniz (2011) observa que o princípio da afetividade em conjunto com o princípio da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana ganhou uma proporção extraordinária na composição familiar multiparental, pois, para que a paternidade socioafetiva seja declarada, é indispensável a existência de laço de afetividade entre os envolvidos, fruto de uma relação de afeto construída pela convivência.
O princípio da dignidade humana é o maior de todos os princípios e é dele que emanam todos os outros: autonomia da vontade, afetividade, liberdade, igualdade, enfim uma gama de princípios éticos. Esse princípio-mor orienta a ação positiva do Estado, que “não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas” (DIAS, 2017).
No Código Civil de 2002, em seu art. 1.605, II, está presente, ainda que de maneira implícita, uma possibilidade ensejadora da paternidade socioafetiva. A “posse de estado de filho” se configura na relação paterno-filial, na qual uma pessoa deseja ter outra como se filho seu fosse, constituindo-se por “um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que cria e educa” (GOMES, 1999).
Fujita (2009, p. 113) descreve a posse de estado de filho:
Ela se traduz pela demonstração diuturna e contínua da convivência harmoniosa dentro da comunidade familiar, pela conduta afetiva dos pais em relação ao filho e vice-versa, pelo exercício dos direitos e deveres inerentes ao poder familiar, visando ao resguardo, sustento, educação e assistência material e imaterial do filho.
Nesse sentido, o Enunciado 519 do Conselho de Justiça Federal trouxe denodada interpretação ao art. 1.593 do Código Civil, ao dispor que “o reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais”.
No entendimento de Cassetari (2017), é necessário fazer uso da analogia ao artigo 1.595 do Código Civil, pois “a posse do estado de filho tem assento no Direito de Família pelo uso milenar da posse do estado de casado”. Complementa ainda esse autor que merece tratamento jurídico a parentalidade formada pela posse do estado de filho, pois é a aplicação da teoria da aparência sobre as relações entre pais e filhos.
Nessa perspectiva, a filiação afetiva é facilmente observada no Brasil, pois culturalmente existe a figura da adoção à brasileira, que nada mais é do que registrar um filho que não é seu. Esse costume é antigo, utilizado para dar um pai ao filho de uma mulher que engravidou sem estar casada. O certo é que, em casos como esses, a convivência com o pai não biológico gerou afetividade paterno-filial.
O grande problema surge quando se finda o relacionamento dos pais e o guardião do filho interpõe ação de alimentos em face do pai afetivo, que por sua vez se insurge por meio de alguma medida judicial a fim de contestar a paternidade, por entender não ser sua obrigação pagar alimentos ao filho que não é seu biologicamente.
Sob essa óptica, os tribunais têm decidido não ser possível a contestação da paternidade com anulação do registro civil, visto que na relação paterno-filial se estabeleceu laços de afetividade, prevalecendo a paternidade afetiva em detrimento da biológica2.
Uma das certezas no direito de família é de que mater semper certa est (a mãe sempre é certa), bastando que na declaração de nascido vivo constem os dados maternos da criança. Esse documento emitido pelo hospital em que ocorreu o parto é o bastante para se dirigir ao cartório de registro civil e proceder ao assento de nascimento do filho.
Quanto à paternidade, tal declaração deve ser feita voluntariamente ao oficial do registro civil, pessoalmente ou apresentando a certidão de casamento, pois para os pais casados existe a presunção da paternidade disposta no art. 1.597 do Código Civil.
Sob este prisma, se a alegação de não ser o pai biológico fosse admitida, após ter reconhecido espontaneamente a paternidade e estabelecido vínculo afetivo na relação paterno-filial, iria de encontro ao disposto no art. 1.610 da mesma legislação.
É nessa sequência que a conexão de afeto deixa de ser apenas por laços de consanguinidade, eis que há uma verdade fática real de uma relação paterno-filial aparente, que denota o reflexo sociológico e afetivo da filiação. Dessa forma, compreende-se que, independentemente da continuidade desse afeto, a relação de família se mantém, pois, da mesma maneira que em uma sociedade patrimonial ou em um casamento, existe a continuidade de algumas responsabilidades que devem ser obrigatórias para todos.
É perfeitamente aceitável que, efetivado o reconhecimento voluntário da paternidade, não seja possível se eximir dos efeitos jurídicos dela decorrentes. Por outro viés, é importante ter plena certeza da assunção da paternidade socioafetiva, sem desvincular a biológica do assento de nascimento do filho.
3. A SUCESSÃO EM FACE DA PLURALIDADE FAMILIAR
A priori, os referenciais teóricos apontam para uma nova ordem jurídica por meio da Constituição Federal de 1988, que ampliou o conceito de família, dando ensejo ao reconhecimento do pluralismo familiar e ao estabelecimento de princípios fundados na dignidade da pessoa humana, o que fez surgir a ideia de um novo conceito de família.
3.1. A novidade do pluralismo familiar e a multiparentalidade
Como consequência dessas mudanças, houve uma flexibilização do significado de paternidade, com a observância do vínculo afetivo como fator determinante nas relações entre pais e filhos, dando origem a uma nova modalidade de paternidade, qual seja: a parentalidade socioafetiva.
Com a aceitação cada vez maior da parentalidade socioafetiva, colocou-se em pauta o questionamento acerca da preponderância da paternidade biológica sobre a socioafetiva, e, posteriormente, com a aplicação da tese fixada na Repercussão Geral 622 do Supremo Tribunal Federal, sobreveio uma resposta a uma questão social até então existente, com o reconhecimento da multiparentalidade em âmbito jurisprudencial.
O entendimento do STF trouxe à tona uma série de questionamentos quanto à possibilidade de coexistência da paternidade biológica e da socioafetiva no Brasil, sobretudo acerca da inexistência de legislação em relação ao tema no ordenamento jurídico.
O Código Civil de 2002 prevê, em seu art. 1.593, que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Para Cassetari (2017), por permitir outra origem de parentesco, o referido dispositivo autoriza que se reconheça a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco.
No que concerne à desbiologização da paternidade em prol de vínculos estabelecidos por laços de afetividade, a multiparentalidade adquiriu caráter de coexistência jurídica, pois as paternidades socioafetiva e a biológica alcançaram o mesmo grau de hierarquia. Dessa maneira, nessa relação paterno-filial, todos os pais assumem encargos inerentes ao poder familiar, assim como os filhos desfrutam dos direitos e deveres em relação a todos.
Um dos efeitos jurídicos decorrentes da filiação, independente de qual for, é o direito sucessório. Sendo assim, da mesma forma que ocorre na filiação consanguínea, a sucessão é inerente à filiação socioafetiva, visto serem vedadas quaisquer designações discriminatórias entre os filhos.
Nesse enfoque, destaca Goulart (2013, p. 23):
A Carta Magna traz com toda clareza que não pode haver discriminação sobre os tipos de filiações, ou seja, não importa como se deu essa filiação, será igualitária como se fosse um filho legítimo [sic], conforme o artigo 227, parágrafo 6º, do diploma legal referido. Dessa forma, caso haja o reconhecimento de uma filiação socioafetiva, este terá os mesmos direitos das demais filiações. […] uma vez que se tem a posse de estado de filho consolidado, logo este seria um herdeiro legítimo necessário como as filiações biológicas.
Nessa senda, o filho socioafetivo pode demandar o reconhecimento da relação paterno-filial a qualquer tempo, sejam os pais vivos ou mortos. Embora exista a
possibilidade de reconhecimento da paternidade post mortem, é necessário que os tribunais sejam cautelosos ao julgarem esses pleitos pelo caráter patrimonial que os recobre, visto que se realmente existia o animus de ter declarada a paternidade socioafetiva, deveria ter sido ao menos iniciada enquanto os pais ainda estavam vivos.
Por outro viés, em precedente julgado pela ministra Maria Isabel Gallotti, em junho de 2019, foi indeferido seguimento ao recurso especial interposto contra acórdão proferido pela 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o qual reconhecera a paternidade socioafetiva de um pretenso filho, legitimando-o para a tutela de interesses sucessórios na condição de irmão colateral socioafetivo. Nesse caso, nos autos da ação de inventário, os requerentes apresentaram testamento público intitulando-se como únicos herdeiros testamentários, mas foi constatada a falsidade da assinatura do testador através de laudo de exame grafotécnico. Percebeu-se, nesse contexto, a característica corruptiva do (então) irmão biológico3. Nesse julgado, a tese da multiparentalidade foi aplicada em via transversa, ou seja, a mesma que concede direitos aos filhos afetivos também gera a perda de direitos aos consanguíneos, visto que, no caso em tela, ficou comprovada a construção da posse do estado de filho afetivo, sendo-lhe garantido o direito de percepção de herança.
O reconhecimento múltiplo da parentalidade pode parecer estranho no campo abstrato de análise. Porém, quando se debruça sobre casos concretos, pode-se chegar à conclusão de que é a medida mais adequada e justa aos interesses das partes envolvidas. Para averiguar se a solução pelo reconhecimento da multiparentalidade é a mais adequada, surge a necessidade de identificar critérios para auxiliar na análise do caso concreto.
3.2. As soluções sucessórias à luz da codificação atual
A sucessão hereditária ocorre em virtude do falecimento de uma pessoa que deixa seus bens, os quais são transmitidos aos seus sucessores no momento da sua morte, podendo ocorrer de duas formas: por meio de lei (sucessão legítima) ou por testamento (sucessão testamentária).
A sucessão legítima independe da manifestação de vontade do de cujus, pois trata exatamente de sucessão na qual o falecido não deixou ato de última vontade (testamento) ou, caso tenha deixado, dispõe de parte dos seus bens. Assim, a sucessão legítima contempla a quota dos bens indisponíveis que não foram objeto de ato de última vontade do falecido. Podendo ocorrer a título universal ou singular.
Podem receber o patrimônio deixado pelo falecido os que têm vocação hereditária, estabelecido no art. 1.829 do Código Civil, o qual dispõe uma ordem de chamamento à herança. Observe-se o dispositivo:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I − aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (artigo 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II − aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III − ao cônjuge sobrevivente;
IV − aos colaterais.
Em outras palavras, a ordem de vocação hereditária, expressa no referido dispositivo, nada mais é do que a sequência pela qual os parentes sucessíveis serão chamados para receber a herança (entenda-se como bens e dívidas).
Mais à frente, em seu art. 1.845, o Código Civil estabelece como herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge e, no art. 1.593, dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Recorde-se que o atual Código Civil foi elaborado pelo jusfilósofo Miguel Reale, que tem uma característica conservadora, na década de 1970, vindo a ser sancionado pelo então presidente da república somente no ano de 2002. Sob essa óptica, quando o legislador elaborou a normativa civil concernente aos direitos de família e sucessórios, não fazia ideia de que chegaria a ponto de as famílias serem (re)compostas por múltiplos pais ou mães. No entanto, diante da possibilidade de interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, alcança a proteção necessária aos temas familiares.
Nessa perspectiva, Cassetari (2017) evidencia o raciocínio segundo o qual se deve ter cautela no que concerne ao reconhecimento da paternidade biológica para fins sucessórios, pleiteado post mortem, quando o autor criado por pai registral nunca conviveu com o pai biológico, e dele já ter recebido a herança, de forma que a tese da multiparentalidade possa gerar a perda de direitos aos parentes consanguíneos diante da possibilidade de caráter exclusivamente patrimonial.
Por outra vertente, Maria Berenice Dias (2017) afirma que, em sede de multiparentalidade, “o filho concorrerá na herança de todos os pais que tiver”.
Em análise convergente, Madaleno (2020) afirma que:
Com relação à filiação socioafetiva, em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, no exame da Repercussão Geral 622, relatada pelo Ministro Luiz Fux, concluiu pela equivalência da filiação socioafetiva, descartando qualquer prevalência entre os vínculos de filiação biológico e socioafetivo, devendo ser consignado que a partilha entre os filhos se faz com igualdade de valores e por cabeça, só podendo ser cogitada alguma diferença nos montantes dos quinhões da prole, no caso de eventual sucessão testamentária, se o autor da herança decidiu beneficiar algum dos seus descendentes com sua porção disponível, eis que na intangível não há nenhuma possibilidade de qualquer tratamento sucessório desigual, e se houve alguma doação em vida, o descendente donatário é obrigado a conferir os bens doados, a fim de serem igualadas as legítimas se a doação não abarcou a porção disponível e passível de dispensa da colação.
Em tal contexto, foi aprovado o enunciado doutrinário 632, na VIII Jornada de Direito Civil do STJ/CFJ, consolidando esta posição: “Nos casos de reconhecimento de multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à participação na herança de todos os ascendentes reconhecidos”.
Diante da ausência de previsão de normas específicas aos efeitos sucessórios na multiparentalidade, percebe-se a aplicação do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-lei 4.657/42), a qual dispõe que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Certamente a questão da multiparentalidade é delicada, pois está intimamente ligada ao fundamento maior da dignidade humana. Assim, exige-se uma análise apurada e cuidadosa daquele que julga, razão pela qual o debate, o estudo e a reflexão devem ser
contínuos, de maneira que se faça uma interpretação sistemática entre as normas escritas e os posicionamentos preestabelecidos como solução para todas as situações que envolvem a questão.
Por outro viés, ainda que o intuito seja a proteção dos filhos ou garantir a eles um patrimônio no futuro, a multiparentalidade deixa rastros de injusta divisão patrimonial, uma vez que, em uma família na qual existam múltiplos pais ou mães e filhos de diferentes relacionamentos, haveria desproporção no percebimento dos quinhões no evento morte dos ascendentes. Essa situação causaria desequilíbrio socioeconômico familiar, pois, embora a intenção seja a proteção dos filhos, não se refletiu suficientemente sobre as consequências causadas aos demais envolvidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ausência de previsão de normas específicas ao fenômeno da multiparentalidade gera dúvidas a respeito da legitimidade e da proporcionalidade na divisão da quota hereditária.
Ao abordarmos o assunto concernente às possibilidades e desafios da sucessão na multiparentalidade percebe-se que a tese de Repercussão Geral 622 do Supremo Tribunal Federal, embora tenha proporcionado uma solução para comportamentos há tempos praticados pelas famílias brasileiras, pode ter causado insegurança jurídica, pois deixa rastros de injusta divisão patrimonial.
Embora a sociedade viva em constante evolução, em busca de realização individual, da felicidade, respaldada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o Poder Judiciário dever agir com parcimônia na análise do caso em concreto, diante da histórica conduta duvidosa de alguns brasileiros que tiram proveito de algumas situações.
Concretizando essa ideia, a multiparentalidade, assim como a paternidade socioafetiva, vem sendo tema bastante recorrente nos tribunais do nosso país. Apesar de ainda não existir um entendimento pacífico a respeito do assunto, vem-se notando uma tendência no Judiciário de compreender a figura do afeto como mais importante do que a própria relação de sangue entre ascendentes e descendentes, visto que a relação paterno-filial socioafetiva não se funda no nascimento (critério biológico ou jurídico), mas no ato de vontade, que deriva da convivência e não do sangue.
Conclui-se que a subjetividade humana, sem dúvida, representa um grande desafio ao direito, pois a todo momento nos deparamos com situações que colocam em xeque os dogmas jurídicos e nos fazem repensar as normas jurídicas e a sua aplicação. Nota-se que o direito das famílias é um dos ramos do direito que mais esbarra com essa situação, capaz de trazer angústia e incerteza na aplicação da lei ao caso concreto.
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ALCIONE MIRANDA BARBOSA: Multiparentalidade no direito sucessório/doutrina, 1
Direito sucessório, 1
Multiparentalidade no direito sucessório/doutrina, 1
FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: Multiparentalidade no direito sucessório: possibilidades e desafios4. Title: Multiparenthood in inheritance law: possibilities and challenges. Autora: Alcione Miranda Barbosa. Advogada. Pós-graduanda em Direito Civil com Ênfase em Família e Sucessões. Resumo: Com a multiparentalidade surgiram novos direitos e garantias fundamentais voltadas à entidade familiar, gerando efeitos no parentesco, como nome, obrigação alimentar, guarda, visitas, mas principalmente no campo do direito sucessório, objeto de discussão no meio jurídico. Na ausência de normas específicas, há dúvidas a respeito da legitimidade e da proporcionalidade na divisão da quota hereditária. Vem-se notando uma tendência no Judiciário de compreender a figura do afeto como mais importante do que a própria relação genética entre ascendentes e descendentes, sob o argumento de que a relação paterno-filial socioafetiva não se funda no nascimento, mas no ato de vontade que deriva da convivência e não do sangue. Palavras-chave: MULTIPARENTALIDADE; DIREITO SUCESSÓRIO; MULTIPARENTALIDADE E AFETIVIDADE; SUCESSÃO LEGÍTIMA; MULTIPARENTALIDADE E VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. Abstract: With multiparenthood, new fundamental rights and guarantees have emerged aimed at the family entity, generating effects on kinship, such as name, maintenance obligation, custody, visits, mainly in the field of inheritance law, object of discussion in the legal field. In the absence of specific rules, there are doubts about the legitimacy and proportionality of the division of the hereditary quota. There has been a tendency in the Judiciary to understand the figure of affection as more important than the genetic relationship between ascendants and descendants, under the argument that the socio-affective paternal-affiliate relationship is not based on birth, but on the act of will that comes from living together and not from blood. Keywords: MULTIPARENTING; SUCCESSION LAW; MULTIPARENTING AND AFFECTIVITY; LEGITIMATE SUCCESSION; MULTIPARENTING AND HEREDITARY VOCATION. Data de recebimento: 30.06.2021. Data de aprovação: 29.11.2021 Fonte: Revista Bonijuris, vol. 34, n. 1 – #674 – Fev/Mar 2022. Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).
1 A Justiça de Vitória da Conquista (BA) homologou acordo concedendo adoção de uma criança a um casal de mulheres sem destituir o poder familiar da genitora, reconhecendo a tese da multiparentalidade, passando a conter o nome das três mães no registro de nascimento da criança.
2 A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2009, julgou improcedente a ação proposta por uma inventariante e a filha do falecido objetivando anular um registro de nascimento sob a alegação de falsidade ideológica. 3 STJ – TP: 2082 RJ 2019/0144157-3; Relatora: ministra MARIA ISABEL GALLOTTI; Publicação: 04.06.2019. NOTAS 4 Este artigo é baseado no Trabalho de Conclusão de Curso do Programa de Pós-Graduação de Direito Civil com ênfase em Família e Sucessões, sob orientação do professor Delmiro Porto (2020).