Clèmerson Merlin Clève PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA UFPR E DO UNIBRASIL
Melina Breckenfeld Reck PROFESSORA DE DIREITO ECONÔMICO
Nas últimas décadas, mercê de recorrentes episódios de crise econômica que ultrapassam fronteiras nacionais, não tem sido rara a preocupação com a atuação interventiva do Estado nas atividades econômicas.
A necessidade de intervenção estatal, ao ser defendida, é atrelada ao tema da regulação e à existência de instituições estatais eficientes que regulem as atividades econômicas lato sensu e que se destinem a conciliar objetivos às vezes colidentes, por exemplo, estabilidade dos mercados, segurança jurídica (notadamente mediante o respeito às regras e aos contratos) e proteção e defesa de direitos dos cidadãos.
Na década de 1990, houve, no Brasil, uma redefinição do modelo de intervenção estatal com o aprofundamento dos mecanismos de intervenção indireta (aprofundamento esse que vem sendo, aliás, ressuscitado diante dos efeitos ensejados pela pandemia de covid-19). No bojo das emendas constitucionais que se realizaram constaram justificativas relativas (i) à tese da incapacidade financeira do Estado (esgotamento do padrão de financiamento do setor público) para intervir diretamente no domínio econômico e (ii) às necessidades de robustecimento de suas atividades reguladora, fiscalizadora e fomentadora, assim como de desmonte do Estado prestador e produtor (agente econômico).
Todavia, essa redefinição do papel do Estado não elide nem pode mitigar o papel necessário e indispensável do Estado como instrumento de efetivação dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3o da cf, dentre eles o desenvolvimento nacional). Ainda que tenha sido reduzida[1] a atuação estatal como provedor de bem ou serviço (intervenção direta), isto é, como agente econômico, o Estado não só pode como deve exercitar integralmente a intervenção indireta por meio da regulação jurídica e do fomento.
A propósito, ponderam Vital Moreira e Maria Manuel Leitão Marques (2003, p. 13) que:
O regresso, nas duas últimas décadas, ao paradigma da economia de mercado, depois de uma longa fase de forte regulação e intervenção estadual directa na economia, significa desde logo a revalorização da economia privada, da concorrência e do mercado. As palavras‑chave são privatização, liberalização, desregulação. Mas seria errôneo pensar que a privatização e liberalização do sector público se traduz necessariamente num processo de desregulação e devolução pura e simples para as leis do mercado. Longe disso. A desintervenção económica do Estado não quer significar o regresso ao ‘laissez‑faire’ e ao antigo capitalismo liberal. Pelo contrário: o abandono da actividade empresarial do Estado e o fim dos exclusivos públicos provocou em geral um reforço da actividade regulatória do Estado.
Nessa seara, importa lembrar a confluência dos arts. 170, 173, 174 e 175[2] da Constituição Federal no que concerne à atuação estatal sobre e no domínio econômico, bem como o equilíbrio compromissório que a carta magna estabelece na tutela das atividades econômicas lato sensu (serviços públicos e atividades econômicas stricto sensu).
No parágrafo único do art. 170 assegura-se a livre iniciativa, porém não se descarta a possibilidade de a lei exigir prévia autorização de órgãos públicos para o desempenho de determinada atividade econômica. Trata‑se de ressalva semelhante à realizada pelo art. 5º, xiii, em relação ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, e que demanda a aplicação do regime da reserva de lei qualificada[3], ou seja, além de eventual restrição ser necessariamente veiculada em lei formal, deverá ser razoável e proporcional, não se admitindo o esvaziamento da livre iniciativa ou, conforme o caso, do livre exercício profissional.
Aliás, o escopo primordial da regulação estatal (intervenção indireta nas atividades econômicas lato sensu) e, inclusive, da criação das agências reguladoras, em razão, por exemplo, de privatizações, reside no compromisso de não somente conciliar a lógica privada do lucro com a adequada prestação de serviços públicos e com as regras e princípios que integram a ordem econômica constitucional, mas também de erigir mecanismos que promovam o desenvolvimento econômico e propiciem a universalização de tais serviços (evitando-se que a oferta concentre-se nos segmentos mais atrativos da demanda) e a concretização desses princípios.
Lançadas estas ponderações introdutórias, promover-se-á, no presente ensaio, uma análise da interface entre regulação e antitruste, ao ensejo dos 20 anos de existência dos entes reguladores Agência Nacional de Transportes Terrestres (antt) e Agência Nacional de Transportes Aquaviários (antaq), no tocante aos portos e ferrovias.
1. SETORES ESTRATÉGICOS DE INFRAESTRUTURA, CRIAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS, DIFERENCIAÇÃO ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E ATIVIDADE ECONÔMICA STRICTO SENSU
A disciplina jurídica dos setores de infraestrutura é fruto da experiência histórica da sociedade brasileira. A matéria sempre oscilou entre a participação da iniciativa privada e a forte presença do poder público na construção e operação desses setores.
Por se tratar de setores estratégicos ao desenvolvimento e soberania nacionais, a carta magna pretende, quando erige tais atividades como serviço público, promover regulação apropriada, específica, intensa e apartada da regra de liberdade inerente às relações econômicas privadas.
De outro lado, é inegável e primordial a atuação do Estado brasileiro para solucionar os chamados gargalos de infraestrutura em setores estratégicos (ferrovias, rodovias, energia elétrica, saneamento, portos etc.), deficiências que impedem o desenvolvimento econômico e que enfraquecem a indústria nacional.
Deveras, diante desse quadro e das vicissitudes sociais e econômicas brasileiras, a intervenção regulatória indireta do Estado no domínio econômico deve promover o equilíbrio entre os interesses privados e públicos. Deve propiciar serviços adequados e tarifas módicas, assegurar a livre iniciativa e a livre concorrência, impedir o exercício abusivo do poder econômico. Enfim, garantir a observância dos princípios que regem a ordem econômica constitucional.
Sob o argumento de tais propósitos serem concretizados recorreu-se, no Brasil, à criação de agências reguladoras que, embora não se possam negar avanços já obtidos, ainda têm um longo e árduo caminho pela frente. Diante de especificidades de determinados segmentos econômicos estratégicos e de tipicidades de monopólio naturais e legais, emergiram no bojo da chamada intervenção estatal setorial atividades que não prescindem da aplicação dos mecanismos previstos no capítulo da ordem econômica constitucional (art. 170 e seguintes).
Na redefinição do modelo interventivo do Estado brasileiro e diante da escassez, na década de 1990 e também na última década, de recursos públicos, operou-se: (i) a delegação da prestação de ampla gama de serviços públicos para a iniciativa privada; (ii) a transformação de alguns serviços públicos em atividades econômicas stricto sensu (permitindo a ampliação das hipóteses sujeitas à autorização em vez da concessão ou permissão); (iii) a criação das agências reguladoras.
Como registra Luís Roberto Barroso (2003, p. 31), a privatização
trouxe drástica transformação no papel do Estado: em lugar de protagonista na execução dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento, regulação e fiscalização. É nesse contexto histórico que surgem, como personagens fundamentais, as agências reguladoras.
Não obstante a origem das agências reguladoras no Brasil esteja muito vinculada ao fato de que a execução dos serviços públicos foi transferida à iniciativa privada, tais autarquias especiais, dotadas de prerrogativas próprias e caracterizadas por sua autonomia em relação ao poder público, não têm sua atuação restringida aos serviços públicos, sendo também relevantes no âmbito das atividades econômicas stricto sensu, consoante, aliás, o previsto no art. 174 da Constituição da República.
O regime especial autárquico conferido às agências reguladoras brasileiras, com, de um lado, estabilidade e mandato assegurados aos seus dirigentes e, de outro, a previsão de um regime de incompatibilidade e da quarentena, visa a impedir ingerências indevidas do Poder Executivo, injunções político-partidárias e, também, lobbies dos grandes grupos empresariais, bem como a preservar a natureza técnica das funções executivo-administrativas, normativas e decisórias desempenhadas pelas agências reguladoras.
De outro lado, no que se refere às espécies de atividade econômica em sentido estrito e serviço público, convém lembrar que definir serviço público é uma tarefa árdua e hercúlea, que tem merecido, há anos, especial e profunda atenção dos juristas[4].
Todavia, mercê de tal definição encontrar-se inserida em debates, inerentes à ciência política, sobre os escopos, limites de atuação, funções e papéis do aparato estatal, trata-se de noção que se altera no tempo. Já foi um verdadeiro mito na França, conforme menciona Jacques Chevallier (1997, p 7-8), já passou por crises. Há definições amplas, restritas e ecléticas. É atingida pelo advento de figuras novas, por exemplo, na Comunidade Europeia fala-se em serviços universais e atividades econômicas de interesse geral.
A noção de serviço público, tal como os institutos jurídicos em geral, é conformada pelas relações, entre o Estado e a sociedade, existentes em determinado momento histórico, as quais são dinâmicas e mutáveis de acordo com as vicissitudes ideológicas, políticas, sociais e econômicas que se apresentam em distintas épocas e em diferentes países.
A propósito, mercê de sua natureza compromissária, a Constituição de 1988 almeja conciliar os interesses públicos e privados com a efetivação dos objetivos fundamentais nela plasmados. Tal feição repercute na problemática acerca da noção de serviço público, na medida em que este, por ser atividade econômica lato sensu[5] (art. 175, da Constituição Federal), substancia, de certo modo, o marco divisório das esferas pública e privada.
Não obstante a relevância da explanação acerca da noção de serviço público, aprofundar, nesta oportunidade, a sua análise implica extrapolar o objeto do presente ensaio. De qualquer modo, é oportuno reforçar que o enquadramento de determinada atividade como serviço público envolve consideração a respeito da concepção do Estado e de seu papel em dado momento histórico, bem como que, neste ensaio, em razão da tendência, seja em recentes leis (v.g. nova lei dos portos – Lei 12.815/13; Lei 14.134/21 – nova lei do gás), seja em projetos de lei (v.g. pls 261/18 – marco legal das ferrovias), de ampliação da utilização de autorizações em vez de concessões, será abordada a problemática ensejada pelo advento, no bojo das reformas constitucionais da década de 1990, da figura da autorização, prevista no art. 21 da Constituição da República.
O art. 21 da cf integra, como se sabe, o capítulo que trata dos bens e das competências legislativas e materiais da União e que contempla uma gama variada de atividades cometidas a esse ente federativo, sem haver referência expressa a elas como sendo serviço público.
De outra parte, no capítulo da Constituição (art. 170 e ss.) que cuida dos princípios gerais da atividade econômica denota-se o enquadramento dos serviços públicos como atividade econômica lato sensu e, outrossim, encontra-se o único dispositivo constitucional que disciplina os serviços públicos de forma genérica (irradiando efeitos ao todo da carta). Está-se a falar da regra contida no art. 175, que prevê incumbir ao poder público a prestação dos serviços públicos, a qual pode realizar-se diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre mediante licitação.
Com efeito, na hipótese de o Estado decidir delegar a prestação (não a titularidade) do serviço público à iniciativa privada, deverá fazê-lo sempre mediante licitação, seja para efeito de concessão, seja para a permissão. Aliás, mencione-se, por oportuno, que, mesmo antes da Constituição de 1988, em 1979, o stf, ao apreciar os autos de re 89217-6 – que diziam respeito à discussão relativa a hotel de propriedade do Estado de Santa Catarina que se encontrava arrendado à iniciativa privada –, vinculou serviço público e concessão, constando no acórdão a seguinte assertiva: “Não deve ser considerado serviço público aquele que outro particular pode prestar independentemente de concessão”.
Vale dizer, sem embargo de os serviços públicos também possuírem dimensão econômica por estarem relacionados com bens escassos, eles, ao contrário das atividades econômicas stricto sensu, estão ligados mais estreitamente aos fundamentos, princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Cingem-se a critérios diferentes quanto à oportunidade e conveniência de serem prestados em determinadas condições, sob prerrogativas e sujeições especiais. Atinem ao espaço público e supõem que a atividade, qualificada como serviço público, foi excluída das regras de mercado, uma vez que não pode ser afetada e condicionada por tais forças, pelo valor de troca segundo a lógica mercantil simples.
Partindo da premissa da impossibilidade de adoção de interpretação literal do disposto no art. 21 da Constituição Federal, faz-se necessário lembrar que esse dispositivo não busca tratar genericamente do serviço público, mas sim realizar distribuição de competência entre os entes federados.
Em decorrência dessas duas premissas já se poderia concluir que o art. 21, incs. xi e xii, não contempla apenas serviços públicos, isto é, as atividades nele mencionadas não são todas redutíveis a essa condição.
Entretanto, a par disso, a figura da autorização não compadece com a existência de um serviço público, vulnera o previsto no art. 175 da Constituição, e apenas é cogitada, ex vi do parágrafo único do art. 170, para certas atividades econômicas stricto sensu, cuja natureza e importância exigem fiscalização mais ampla e intensa do Estado.
Por isso, as atividades estratificadas nos diversos incisos do art. 21 da cf/88 poderão ou não ser qualificadas como serviço público de acordo com as circunstâncias e segundo a estruturação que se verificar como necessária. É certo, ainda, que o critério essencial para essa definição reside na correlação entre a atividade desempenhada e a satisfação de necessidades direta e imediatamente relacionadas com a dignidade da pessoa humana e com finalidades políticas essenciais (v.g. objetivos fundamentais da república).
Inclusive porque as autorizações cingem-se à possibilidade de exercício de atividades no próprio interesse do particular; ao revés, na permissão e concessão, o escopo precípuo é o atendimento de necessidades coletivas. Ademais, nessa esteira, os serviços públicos devem ser proporcionados em condições não discriminatórias; logo, na autorização, não se aplicam os princípios inerentes à prestação de serviços públicos, tampouco prerrogativas públicas.
Em última análise, as hipóteses contidas nos incs. x, xi e xii do art. 21 da Constituição podem conduzir à emergência tanto de serviço público quanto de atividade econômica stricto sensu.
2. ESTADO REGULADOR E REGULAÇÃO
O termo “regulação” possui natureza polissêmica, que lhe propicia certa abrangência e, ao mesmo tempo, fluidez, ensejando, inclusive, a necessidade de se externar o que se pretende dizer ao se utilizar a expressão “Estado regulador”.
Como se sabe, na seara jurídica, a utilização de expressões deve ser permeada de muita parcimônia, mormente quando o intento é explicar um conceito ou instituto jurídico. No que se refere ao termo “regulação”, essa cautela inclusive deve ser redobrada, eis que se constata que ele vem sendo utilizado, hodiernamente, de forma generalizada, seja por profissionais de outras ciências (economia, administração, jornalismo etc.), seja pelos cidadãos e representantes políticos em geral.
Embora se trate de expressão amplamente conhecida, não se pode dizer que possua um sentido unívoco, bem pelo contrário: há uma ampla gama de significados e nem sempre a expressão é utilizada com o mesmo sentido, razão pela qual, no presente ensaio, faz-se oportuno encontrar um acordo semântico, isto é, definir qual o significado que se adota na utilização do termo.
A propósito, mercê do contido no art. 174 da Constituição Federal, não se pode definir regulação como a mera implantação de regras jurídicas[6], visto que, com esse significado, não se estaria retratando todo o contexto que permeia hodiernamente a atividade regulatória do Estado, inclusive em razão do surgimento das agências reguladoras. Há que se partir da premissa de que o vocábulo “regulação”, atualmente, remete a fenômeno recente que se espraiou internacionalmente baseado na criação das chamadas autoridades independentes (chamadas no Brasil de agências reguladoras) e na implantação de um novo modelo de Estado oriundo de processos de privatização e liberalização da economia mediante a relativização de monopólios estatais.
Portanto, a compreensão do termo “regulação” encontra-se vinculada ao significado que se atribui, também em tempos atuais, à expressão Estado regulador, a qual, diga-se de passagem, igualmente, não se resume ao sentido de o Estado ter a prerrogativa de aprovar normas jurídicas, afinal, se o significado abrangesse apenas esse aspecto, ter-se-ia sempre o Estado como “regulador”.
Partindo-se da premissa de que os significados do termo “regulação” e da expressão “Estado regulador” decorrem da estreita relação entre ambos, no presente estudo, ao utilizá-los, almeja-se referir ao atual modelo estatal, em que são estabelecidas regras jurídicas no processo de abertura econômica e no qual se forja um novo modelo de intervenção estatal na economia mediante a redução da atuação empresarial do Estado. Ressalve-se, no entanto, que não se trata de modelo estatal padronizado, mas sim dinâmico e mutante conforme as vicissitudes históricas, culturais, econômicas e sociais.
Afinal, como assevera Marçal Justen Filho (2002, p. 24-25):
Fala-se muito mais de um “modelo regulador” de Estado para indicar uma situação variável, que se concretiza de diversos modos. A propósito do Estado, poderiam ser aplicadas as palavras de Eros Grau, no sentido de que “A cada sociedade corresponde um direito, integrado por determinadas regras e determinados princípios”. Não obstante podemos, no plano abstrato, falar de certos modelos de direito.
Para Calixto Salomão Filho (2001, p. 14), o emprego do termo não se resume à regulação dos serviços públicos, englobando “toda a forma de organização da atividade econômica através do Estado, seja a intervenção através da concessão de serviço público ou o exercício do poder de polícia”, uma vez que, na concepção desse autor,
no campo econômico, a utilização do conceito de regulação é a correspondência necessária de dois fenômenos. Em primeiro lugar, a redução da intervenção direta do Estado na economia, e em segundo o crescimento do movimento de concentração econômica.
Em suma, no presente texto, a utilização da expressão “Estado regulador” implica a aceitação de que, nessa nova arquitetônica de Estado, houve a modificação não dos fins, mas sim dos mecanismos por meio dos quais o poder público intervém nas atividades econômicas para alcançar os fins almejados pelo estado democrático de direito[7]. Na lição de Justen Filho (2002, p. 21),
a regulação incorpora a concepção da subsidiariedade. Isso importa reconhecer os princípios gerais da livre‑iniciativa e da livre empresa, reservando‑se ao Estado o instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de valores fundamentais.
Pois bem, a respeito desse desenho regulatório, podem ser elencados alguns escopos:
(i) liberalização de atividades até então monopolizadas pelo Estado, para viabilizar ampla disputa pelos particulares em regime de mercado;
(ii) predomínio da competência regulatória: permanece o Estado presente no domínio econômico, não como agente econômico, mas sim se valendo do instrumento normativo e de suas competências políticas para induzir os particulares à realização dos fins necessários ao bem comum;
(iii) a atuação regulatória propugnada admite a possibilidade de intervenção destinada a propiciar a realização de certos valores políticos e sociais, sendo que a relevância dos interesses coletivos envolvidos (serviços públicos, por exemplo) impede a prevalência da pura e simples busca do lucro;
(iv) instituição de mecanismos de disciplina permanente e dinâmica em relação à atividade econômica privada;
(v) intervenção para criar condições de concorrência, inclusive, quando possível, no âmbito dos serviços públicos, uma vez que esta, quando devidamente monitorada pelo Estado, substancia importante instrumento para atingir a justiça social, plasmada constitucionalmente com a consagração dos direitos fundamentais, não representando, assim, um fim em si mesmo.
Tais escopos encontram-se atrelados aos principais motivos do advento desse novo modelo de intervenção estatal, dentre eles:
(i) a insuficiência do Estado de providência na atuação direta na economia (como promotor, gestor e planejador) decorrente do fato de o Estado não possuir todas as informações relevantes e necessárias para dirigir a economia;
(ii) o sofisma do mercado livre, isto é, o reconhecimento de que a mão invisível de Adam Smith não dispensa a necessidade de o Estado intervir para garantir a concorrência entre os agentes, notadamente em razão de existência das chamadas falhas de mercado (ex: externalidades negativas, assimetrias de informação, monopólios naturais etc.);
(iii) a necessidade de proteção aos consumidores, identificados como o lado hipossuficiente nas relações econômicas mantidas com produtores e distribuidores;
(iv) necessidade de assegurar as obrigações de serviço público.
3. INTERFACE ENTRE REGULAÇÃO E ANTITRUSTE NOS PORTOS E FERROVIAS
Por se considerar que a concorrência não é um fim em si mesmo e, em verdade, imbrica-se com os demais princípios e fins na ordem econômica constitucional[8], é utilizada, neste ensaio, o vocábulo “antitruste” no lugar de concorrência. Concorda-se, aliás, com o magistério de Paula Forgioni (2005, p. 23-24), no sentido de que o antitruste é
técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência […] o antitruste já não pode ser visto apenas como um arranjo inteligente de normas destinado a evitar ou neutralizar os efeitos autodestrutíveis, criados pelo próprio mercado, mas, ao contrário, deve ser encarado como um instrumento de implementação de políticas públicas.
Ao tratar de competição no mercado de gás doméstico e de fornecimento de energia, Cosmo Graham (2000, p. 169) salienta que a definição de políticas públicas sobre o tamanho dos mercados competitivos implica opções em termos de valores substanciais, por exemplo, em que extensão os usuários dos respectivos serviços devem ser vistos como consumidores ou cidadãos. Isto é, na hipótese de, como no caso da Lei Antitruste brasileira, que contempla repasse de parte relevante, ser determinado que os benefícios da concorrência devem ser espraiados de forma equânime entre os consumidores haveria certa limitação nos preços adotados pelas empresas, ou seja, instintos de concorrência temperados pela preocupação com a justiça social.
Na reforma do Estado brasileiro, realizada na década de 1990, foram defendidas, entre outras medidas, o fim de monopólios públicos e a abertura de campo para a iniciativa privada, sob o argumento de que a concorrência configuraria um mecanismo eficiente[9] a possibilitar desenvolvimento econômico, uma vez que propiciaria ganhos de qualidade significativos, menores preços e possibilidades de escolha para o consumidor.
No entanto, não se pode sustentar que a eliminação de monopólios públicos enseje a criação de monopólios privados[10], tampouco a possibilidade de exercício abusivo de poder econômico. Vale dizer, não se pode cogitar que a concorrência baste por si mesma e torne desnecessária a regulação estatal, pelo contrário, há (e deve haver) uma intensa e permanente relação entre regulação e antitruste.
A relação de dependência entre regulação e antitruste também é reconhecida por Vital Moreira e Maria Leitão Marques (2003, p. 15) quando abordam a nova economia de mercado, quando afirmam que:
Ao contrário da economia baseada na intervenção econômica do Estado e nos serviços públicos directamente assegurados pelos poderes públicos, a nova economia de mercado, baseada na iniciativa privada e na concorrência, depende essencialmente da regulação pública não somente para assegurar o funcionamento do próprio mercado mas também para fazer valer os interesses públicos e sociais relevantes que só por si o mercado não garante.
Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2003, p. 216), por seu turno, além de ressalvar que livre iniciativa nem sempre se traduz em livre concorrência (e vice‑versa), destaca a necessidade da presença do
Estado regulador e fiscalizador, capaz de regular o livre mercado para fomentar a competitividade enquanto fator relevante na formação de preços, do dinamismo tecnológico, do uso adequado de economia de escala etc., impedindo, assim, que a competitividade, num mercado livre que a desvirtua, se torne instrumento de restrição estratégica à livre‑iniciativa dos concorrentes.
De mais a mais, a adoção de medidas que propiciem desenvolvimento econômico depende da estreita relação entre regulação estatal e antitruste, até porque não se cogita mais a possibilidade de inércia estatal ou que o Estado não possa atuar, por meio da regulação, para propiciar um regime concorrencial possível[11].
Como se vê, a introdução da concorrência[12], em setores de infraestrutura antes monopolizados, ainda que seja um forte argumento utilizado no bojo da reforma do Estado brasileiro, não elimina a atuação regulatória do Estado, mesmo porque muitas vezes a assimetria regulatória (como sucede, no âmbito das ferrovias e portos, em que convivem os institutos da concessão e da autorização) pode ensejar distorções na dinâmica concorrencial e, assim, emerge a necessidade de as agências reguladoras setoriais (v.g. antaq e antt) ficarem bem atentas para não colocarem em condições diferenciadas agentes que concorrem no mesmo mercado relevante (art. 36, § 3º, inc. x).
Inclusive, na recente Lei 13.848/19 (chamada de Lei Geral das Agências Reguladoras), ao se disciplinar sobre a gestão, organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras há nítida presença da interface entre a regulação e o antitruste quando se trata da relação dos entes reguladores com o sistema de defesa da concorrência em seu capítulo iii, intitulado “Da interação entre as agências reguladoras e os órgãos de defesa da concorrência”. Veja-se:
Art. 25. Com vistas à promoção da concorrência e à eficácia na implementação da legislação de defesa da concorrência nos mercados regulados, as agências reguladoras e os órgãos de defesa da concorrência devem atuar em estreita cooperação, privilegiando a troca de experiências.
Art. 26. No exercício de suas atribuições, incumbe às agências reguladoras monitorar e acompanhar as práticas de mercado dos agentes dos setores regulados, de forma a auxiliar os órgãos de defesa da concorrência na observância do cumprimento da legislação de defesa da concorrência, nos termos da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência).
§1º Os órgãos de defesa da concorrência são responsáveis pela aplicação da legislação de defesa da concorrência nos setores regulados, incumbindo-lhes a análise de atos de concentração, bem como a instauração e a instrução de processos administrativos para apuração de infrações contra a ordem econômica.
§2º Os órgãos de defesa da concorrência poderão solicitar às agências reguladoras pareceres técnicos relacionados a seus setores de atuação, os quais serão utilizados como subsídio à análise de atos de concentração e à instrução de processos administrativos.
Art. 27. Quando a agência reguladora, no exercício de suas atribuições, tomar conhecimento de fato que possa configurar infração à ordem econômica, deverá comunicá-lo imediatamente aos órgãos de defesa da concorrência para que esses adotem as providências cabíveis.
Art. 28. Sem prejuízo de suas competências legais, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) notificará a agência reguladora do teor da decisão sobre condutas potencialmente anticompetitivas cometidas no exercício das atividades reguladas, bem como das decisões relativas a atos de concentração julgados por aquele órgão, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas após a publicação do respectivo acórdão, para que sejam adotadas as providências legais.
Os portos e ferrovias representam, na cadeia logística dos meios de transporte, elos fundamentais nas trocas comerciais, tanto no âmbito interno quanto em sede de comércio internacional. Substanciam verdadeiros agentes econômicos, promovendo o fluxo de produtos e viabilizando a presença deles nos mercados. Os modais de transportes podem alterar os valores dos bens/produtos, gerar riquezas e influenciar diretamente o custo das mercadorias.
A relevância do sistema portuário para o intercâmbio comercial torna-o canal essencial e de singular importância para a consecução do desenvolvimento econômico. No caso brasileiro, a posição geográfica, a dimensão continental e o extenso litoral conferem aos transportes terrestres e marítimos natureza indispensável.
Ademais, na condição de elo fundamental da cadeia de transportes, os portos são as estruturas básicas para o intercâmbio comercial, interno e externo, na medida em que, nas instalações portuárias, perfazem-se as indispensáveis interligações modais entre os transportes terrestres e marítimos, desempenhando imprescindível função no desenvolvimento nacional e regional, gerando a necessidade de outros serviços, receitas tributárias e postos de trabalho.
De tal sorte, frente a objetivos de significativa expansão da presença brasileira nos mercados internacionais, a ampliação e a adequação das infraestruturas portuária e ferroviária substanciam temas que demandam atuação efetiva do Estado brasileiro.
Pois bem, tal como nos demais setores em que as redes de infraestrutura são imprescindíveis para sua realização, as atividades ferroviárias e portuárias atrelam-se a dois fatores conexos: essencialidade e altos investimentos iniciais. De um lado, o acesso aos serviços públicos portuários e ferroviários deve dar-se indistinta e ininterruptamente a todo o mercado, independentemente do porte econômico do usuário, e mediante tarifas acessíveis. De outra parte, importam serviços cuja ausência, eventual ou sistemática, tem forte impacto sobre o desenvolvimento econômico. Por fim, envolvem a construção de enormes redes e malhas de infraestrutura, exigindo investimentos iniciais nem sempre recuperáveis. Logo, é possível afirmar-se, na linguagem econômica, que essas redes e malhas de infraestrutura muitas vezes têm características de “monopólios naturais”[13].
De mais a mais, o investimento em setores estratégicos de infraestrutura está relacionado diretamente ao crescimento econômico, segundo Fernando Fróes (2006, p. 235):
A experiência brasileira das décadas de 80 e 90 do século XX demonstrou que a queda da taxa média de crescimento do PIB (8,2% na década de 70, 4,5% nos anos 1980, contra 3,2% nos anos 1990) esteve acompanhada da diminuição dos investimentos na economia […] no caso dos portos e ferrovias os investimentos não foram capazes de recompor nem mesmo a depreciação do capital. Em portos, as inversões de 1995 não chegaram a 20% do valor alcançado em 1990.
Na década passada, o governo federal lançou o pac – Programa de Aceleração do Crescimento, com a pretensão de investir em infraestrutura, em especial a de transportes, distribuindo-se os recursos em três eixos estratégicos: (i) infraestrutura logística, envolvendo a construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias e infraestrutura; (ii) infraestrutura energética, correspondendo à geração e transmissão de energia elétrica, produção, exploração e transporte de petróleo e, por fim, (iii) infraestrutura social e urbana, englobando saneamento, habitação, metrôs.
Diante da inegável necessidade de ampliação das infraestruturas portuária e ferroviária, tal como sucede em outras searas (gás, saneamento etc.), emergiram propostas legislativas, nos últimos anos e década, que defendem a significativa ampliação das hipóteses de autorização para o desempenho das atividades portuárias e ferroviárias.
Afinal, em razão desses desafios do chamado “custo Brasil”, é comum a defesa da necessidade de implantar-se um ambiente concorrencial nos portos/ferrovias que traga eficiência (alocativa, produtiva, distributiva). Porém, não se pode cogitar a existência de concorrência sem bases isonômicas, com prestadores que não coexistam de forma harmônica e não predatória. Não se pode descartar a necessidade de ambiente concorrencial saudável, sob pena de prejuízos consideráveis em termos de eficiência em curto, médio e longo prazos a agentes econômicos, ao Estado, a trabalhadores e consumidores/usuários.
No âmbito portuário, a nova Lei 12.815, que foi editada em 2013 – o que, aliás, ensejou a perda de objeto de adpf na qual se questionava a possibilidade de terminais portuários privativos de uso misto[14] (sujeitos à autorização) movimentarem carga de terceiros em detrimento dos terminais de uso público (sujeitos à concessão) – prevê, expressamente, em seu art. 3º, o objetivo de “aumentar a competitividade e o desenvolvimento do país”. Contempla, em seu art. 2º, xii, a autorização como sendo a “outorga de direito à exploração de instalação portuária localizada fora da área do porto organizada e formalizada mediante contrato de adesão”, sendo, por força de seu art. 8º, “precedida de chamada ou anúncio públicos e, quando for o caso, processo seletivo público” e ficando a antaq incumbida, no § 3º do art. 8o, de adotar “as medidas para assegurar o cumprimento dos cronogramas de investimento previstos nas autorizações”. E, em seus arts. 4º e 5º-B, reforça a necessidade de prévia licitação, respectivamente, para a concessão de bem público destinado à exploração do porto organizado e para o arrendamento de bem público destinado à atividade portuária.
De outro lado, no que atine ao setor ferroviário, o novo marco legal (pls 261/18), embora ainda tramite no Congresso Nacional, também confere nítida ênfase à autorização que, aliás, é retratada, em relatório do Senado como um dos três principais assuntos tratados no projeto:
O projeto original foi estruturado em 69 artigos, distribuídos em oito capítulos, que tratam de três assuntos distintos e inter-relacionados:
1. outorga de autorização à iniciativa privada para construir ou adquirir ferrovias e explorar o transporte sobre os trilhos de sua propriedade, em regime de direito privado;
2. autorregulação ferroviária, que cria a possibilidade de que o próprio mercado promova a gestão e a SF/20356.00352-17 2 coordenação do trânsito de pessoas e de mercadorias por linhas de diferentes empresas, cabendo ao Poder Público atuar apenas em caso de conflitos não conciliados pelas partes; e
3. segurança do trânsito e do transporte ferroviários, assunto atualmente disposto no Regulamento dos Transportes Ferroviários, aprovado pelo Decreto nº 1.832, de 4 de março de 1996.
[…] Em sua justificativa o Senador José Serra esclarece que buscou aproveitar mecanismos bem-sucedidos na legislação nacional de outras áreas de infraestrutura, adaptando dispositivos presentes na Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, que introduziu os serviços de telecomunicações em regime privado; na Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998, que disciplina o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS); e na Lei nº 12.815, de 5 de julho de 2013, que instituiu a figura da autorização do Terminal de Uso Privado. Também foram criados instrumentos urbanísticos já adotados no Japão e em diversos países asiáticos para viabilizar o surgimento do transporte de passageiros privado. […]
A matéria será analisada nos aspectos de constitucionalidade, juridicidade, mérito e técnica legislativa. O projeto é constitucional, uma vez que é calcado nos arts. 22, XI (legislar privativamente acerca de transporte e trânsito) e 21, XII, d (explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão o transporte ferroviário de âmbito federal) […] Quanto ao mérito, estamos de acordo com a justificação do nobre Senador José Serra, cuja iniciativa é digna de louvor. Infelizmente, o transporte ferroviário em nosso País está muito aquém de suas potencialidades, e, concordamos com ele, é necessário um extenso avanço no marco regulatório do setor, de forma a atrair investimentos para aumentar a oferta de infraestrutura ferroviária, impedir a concentração do mercado, reduzir os custos logísticos e promover a concorrência no setor ferroviário, ao passo que se salvaguarda a segurança jurídica.
Dessa forma, entendemos bem-vinda a proposta de disciplinar em lei uma nova modalidade de outorga para a exploração de ferrovias em nosso marco regulatório. Ao autorizarmos a exploração de ferrovias, estamos, de fato, reconhecendo que há um grande espaço para que essa modalidade de transporte possa operar com benefício da liberdade de empreender, em que os investidores têm maior latitude para aplicar e gerir seus recursos, mas que, em contrapartida, os obriga a assumir todos os investimentos e todos os riscos do negócio.
É importante registrar que, embora os preços cobrados no regime de autorização não sejam previamente estipulados pelo regulador, as autorizatárias sujeitam-se ao controle dos órgãos de defesa do consumidor e da concorrência, que têm autoridade para coibir a cobrança de preços abusivos. […]
Com essas constatações iniciais, consideramos oportuno e necessário organizar o transporte ferroviário em uma lei específica, o que, aliás, já estava previsto na própria Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, cujos arts. 13 e 14 fazem referência a essa possibilidade. Foi sob essa inspiração que promovemos um rearranjo na estrutura do projeto, trazendo para seu corpo a reorganização das regras para outorga da gestão da infraestrutura ferroviária e da operação dos transportes ferroviários, então contidas nos arts. 13 e 14 daquela Lei. A organização do setor ferroviário, então, compõe o Capítulo III do nosso substitutivo, que também inclui as regras de outorga do transporte ferroviário associado ou não associado à infraestrutura, de cargas ou de passageiros, executado em regime público ou em regime privado. Em outro caminho, promovemos pequenas alterações na parte da Lei nº 10.233, de 2001, relativas às competências da ANTT, de modo a não restringir a área de atuação da Agência apenas às ferrovias concedidas. Afinal, nos termos do inciso II de seu art. 20, é objetivo da Agência “regular ou supervisionar, em suas respectivas esferas e atribuições, as atividades de prestação de serviços e de exploração da infraestrutura de SF/20356.00352-17 11 transportes”. Sendo assim, levamos para essa lei o conteúdo especificado no art. 50 da proposição original, exceto em relação aos dispositivos que tratavam da autorregulação.[15]
Apesar de o projeto do novo marco legal ferroviário ainda não estar aprovado, desde a privatização da Vale do Rio Doce na década de 1990, não são raros, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), feitos em que se discute o controle da Vale em relação a ferrovias e portos que escoam sua produção de minério de ferro, ou seja, a questão concorrencial já está presente há bastante tempo em relação às ferrovias e portos brasileiros. A título de exemplo, colhe-se, em relatório exarado em 2019 no Cade, os seguintes excertos:
A Vale S.A. é uma sociedade anônima de capital aberto brasileira, integrante do “Grupo Vale”, que atua na produção de minério de ferro, pelotas de minério de ferro e níquel. Produz, ainda, minério de manganês, ferroligas, carvão térmico e metalúrgico, cobre e subprodutos de metais do grupo da platina, ouro, prata e cobalto. Subsidiariamente às suas operações de mineração, a Vale opera um sistema de logística no Brasil e em outras regiões do mundo, incluindo ferrovias, terminais e portos marítimos. Ademais, possui investimentos nos setores de energia e siderurgia, diretamente e por intermédio de coligadas e joint ventures. (…)
Antes de adentrar a análise do presente Ato de Concentração, gostaria de relembrar a atuação do Cade, discorrendo brevemente sobre sua finalidade e sobre seus limites.
A atividade do Cade é disciplinada pela Lei nº 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra à ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
Nesse sentido, o Cade possui como função primordial zelar pela existência de condições de livre-concorrência e livre-iniciativa nos mercados. Nesse sentido, como ensina a Professora Paula Forgioni, a livre-iniciativa visa garantir o acesso dos agentes às oportunidades de troca, enquanto a livre-concorrência visa assegurar a existência de disputa nos diferentes mercados[3].
Assim, o Cade atua essencialmente de forma (i) repressiva, por meio na instauração, instrução e aplicação de sanções em processos administrativos que investigam infrações à ordem econômica; e (ii) preventiva, por meio da análise de Atos de Concentração que preencham os requisitos fixados pela Lei nº 12.529/2011. Em ambos os casos, a missão da Autarquia é zelar pela existência de um ambiente competitivo.
Note-se que se submetem ao escrutínio antitruste as operações envolvendo diferentes mercados, sejam eles regulados ou não. Cada um desses mercados possui características e dinâmicas de funcionamento diferentes, não sendo papel autoridade concorrencial atuar como agência reguladora de um ou de outro mercado. Isso não significa que não caiba ao Cade compreender as nuances de cada mercado para avaliar como tais disposições influenciam a dinâmica competitiva daquele segmento específico, mas não cabe à autoridade antitruste definir todos os aspectos regulatórios e/ou legais que disciplinam o correspondente setor. Pensemos, por exemplo, em um mercado em que um agente dependa de licenças ambientais para que possa operar. Não caberia ao Cade conceder ou não a licença, ou tampouco implementá-la. Porém, se insere no âmbito da competência da Autarquia, por exemplo, avaliar em que medida essa imposição constitui uma barreira relevante à entrada naquele mercado e como essa imposição poderia afetar a dinâmica competitiva. Note-se que são avaliações claramente distintas.
Assim, ainda que o presente caso, como tantos outros, possa envolver diversas questões regulatórias, sociais, ambientais, entre outras, creio que o Cade deve buscar se ater às questões concorrenciais, certamente dentro de seu espectro de sua competência. Não se pode esperar que a autoridade antitruste seja demandada a responder sobre todos esses outros aspectos, pois (i) não possui competência para tanto; e (ii) há órgãos com atribuições específicas de fazer análises muito mais aprofundadas sobre cada uma dessas matérias. Sendo assim, consigno que o presente voto se restringirá às questões concorrencialmente relevantes ao caso, sem adentrar a aspectos estranhos às atribuições deste Conselho.[16]
Pois bem, tanto com relação à antaq, quanto à antt, na comemoração de duas décadas de existência, destaca-se a importância e a necessidade de regulação das atividades ferroviárias e portuárias, que interaja/coopere com o antitruste e que fortaleça a convivência gradual e remanescente entre a autorização e a concessão, assim como as demandas que lhes são impostas para propiciarem segurança, certeza, estabilidade, concorrência justa e adequada, tutela do consumidor/usuários, condições tão caras e essenciais (embora, lamentavelmente, nem sempre existentes) ao desenvolvimento econômico.
CONCLUSÃO
Dessarte, é relevante e oportuno articular regulação e antitruste com o
escopo de modernização dos modais de transporte e de redução dos gargalos
logísticos. Contemplar a questão concorrencial na disciplina normativa, nos
editais e contratos de adesão das autorizações e nos contratos de concessão. Promover
a estabilidade regulatória, com certeza, previsibilidade, enfim, com a
necessária segurança jurídica. Não prescindir da intervenção regulatória
do Estado brasileiro[17]. Buscar, nos certames licitatórios, a
modicidade tarifária, e não a arrecadação de recursos para o erário público.
Evitar que a concorrência se realize entre agentes sujeitos a condições
diferenciadas ou que se realize em detrimento concessionários de serviço
público, para que não haja desestímulos aos investimentos. Ter como meta perene
assegurar igualdade de condições e convivência harmônica e equilibrada entre os
responsáveis pelos modais, propiciando um ambiente concorrencial saudável[18]
que considere as contínuas modificações oriundas do dinamismo das atividades
econômicas e seja convergente, de forma proporcional, com os escopos da ordem
econômica constitucional.
Antitruste, 1
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE: Regulação e antitruste no porto e na ferrovia/doutrina, 1
MELINA BRECKENFELD RECK: Regulação e antitruste no porto e na ferrovia/doutrina, 1
Regulação e antitruste no porto e na ferrovia/doutrina, 1
FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: Interface entre regulação e antitruste nos setores portuário e ferroviário. Title: Interface between regulation and antitrust in the port and rail sectors. Autores: Clèmerson Merlin Clève. Professor Titular de Direito Constitucional da ufpr e do UniBrasil. Advogado e parecerista. Sócio-fundador do escritório Clèmerson Merlin Clève Adv. Ass. Melina Breckenfeld Reck. Professora de Direito Econômico. Procuradora-Geral do UniBrasil. Mestre em Direito do Estado pela ufpr. Advogada. Sócia do escritório Clèmerson Merlin Clève Adv. Ass. Resumo: Os portos e ferrovias representam, na cadeia logística dos meios de transporte, elos fundamentais nas trocas comerciais, tanto no âmbito interno quanto em sede de comércio internacional. Substanciam verdadeiros agentes econômicos, promovendo o fluxo de produtos e viabilizando a presença deles nos mercados. Os modais de transportes podem gerar riquezas e influenciar diretamente o custo das mercadorias. Frente a objetivos de significativa expansão da presença brasileira nos mercados internacionais, a ampliação e a adequação das infraestruturas portuária e ferroviária substanciam temas que demandam atuação efetiva do Estado brasileiro, articulando regulação e antitruste com o escopo de modernizar os modais de transporte e reduzir dos gargalos logísticos. Abstract: Ports and railways represent, in the logistical chain of means of transport, fundamental links in trade, both domestically and in international trade. They substantiate real economic agents, promoting the flow of products and enabling their presence in the markets. Transport modes can generate wealth and directly influence the cost of goods. In view of the objectives of significant expansion of the Brazilian presence in international markets, the expansion and adequacy of port and railway infrastructures substantiate themes that demand effective action by the Brazilian State, articulating regulation and antitrust with the scope of modernizing transport modes and reducing bottlenecks. logistics. Data de recebimento: 23.02.2021. Data de aprovação: 05.04.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 3 – #670 – jun./jul. 2021, págs …, Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, pr, Brasil, issn 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br). |
- ferências
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NOTAS
[1] Ainda que de forma subsidiária e excepcional, não se olvide que o art. 173 admite a exploração direta de atividade econômica pelo Estado quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo.
[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre‑iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede no País. Parágrafo único: É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei; Art. 173 – Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (…) § 4.º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros; Art. 174 – Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativa para o setor privado; Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
[3] Cf. CLÉVE, Clèmerson Merlin. Soluções práticas de direito – pareceres –São Paulo: RT, 2012, v. I, p. 141 e ss. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo, Celso Bastos, 1998. p. 34; STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001. p. 35.
[4] Essa questão é abordada, a título de exemplo, nas seguintes obras: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007; DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho publico. Trad. Adolfo Posada y Ramón Jaen. 2. ed. Madrid: F. Beltran, 1926; GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço público. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 2003; JUSTEN, Mônica Spezia. A noção de serviço público no direito europeu. São Paulo: Dialética, 2003; LAUBADÈRE, André de. Direito público econômico. Coimbra: Almedina, 1985; LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007; MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004; ORTIZ, Gaspar Ariño. Princípios de derecho público econômico. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003.
[5] Conferir, nesse sentido, o magistério do ministro Eros Roberto Grau: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998 – interpretação e crítica. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 92‑101.
[6] A propósito, Floriano Azevedo Marques Neto assevera que: “cumpre separar a atividade regulatória da atividade regulamentar. O baralhamento entre os dois conceitos leva alguns doutrinadores a reduzir a atividade de regulação estatal ao seu caráter meramente normativo. Esta mesma confusão está também na base de posições doutrinárias que procuram identificar o processo de reforma regulatória (e o crescimento dos mecanismos de nova regulação estatal) com processos de desregulamentação ou de desregulação. A atividade de regulação estatal envolve – dentro das balizas acima divisadas – funções muito mais amplas que a função regulamentar (consistente em disciplinar uma atividade mediante a emissão de comandos normativos, de caráter geral, ainda que com abrangência meramente setorial). A regulação estatal envolve, como veremos adiante mais amiúde, atividades coercitivas, adjudicatórias, de coordenação e organização, funções de fiscalização, sancionatórias, de conciliação (composição e arbitragem de interesses), bem como o exercício de poderes coercitivos e funções de subsidiar e recomendar a adoção de medidas de ordem geral pelo poder central. Sem essa completude de funções não estaremos diante do exercício de função regulatória. (p. 37‑38). Porém, não fosse essa plêiade de atividades intrínseca à função de regulação, a sua distinção da atividade meramente normativa e regulamentar, entre nós, já estaria patente do próprio texto constitucional. Com efeito, o art. 174 da CF imputa ao Estado o papel de “agente normativo e regulador da atividade econômica” (a qual, nos parece, é aqui utilizada no sentido amplo, compreendendo tanto as atividades econômicas em sentido estrito como aquelas consideradas serviços públicos). Ora, se o Constituinte se arvorou no dever de distinguir os dois papéis do Estado em face da ordem econômica, separando a atividade regulamentar (normativa) da atividade regulatória (esta última compreendendo o detalhamento dos aspectos de fiscalização, incentivo e planejamento), é certo que, para a ordem constitucional brasileira, regular não é sinônimo de regulamentar” (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes – Fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 37‑38).
[7] Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão ressalta não ler havido “uma mudança nos objetivos – a maioria deles de sede constitucional – destas atividades, mas sim nos meios delas os alcançarem: de uma titularidade estatal exclusiva e unicidade de prestador sob uma intensa regulação, para uma pluralidade de prestadores insujeitos à regulação estatal em uma sria de importantes aspectos de suas atividades” (ARAGÃO, Alexandre. Serviços Públicos e Concorrência. In: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte: Fórum, n. 2, p. 54‑124, abr.‑jun. 2003, p. 63).
[8] “O direito da concorrência no Brasil – seja no aspecto de seu texto normativo, seja no de sua efetiva aplicação – é determinado pelos princípios jurídicos conformadores da ordem econômica constitucional. Observe‑se, assim, que a ordem econômica constitucional não é estabelecida apenas pelas regras dispostas no Título VII da Constituição, pois diversas disposições tratadas em outros títulos referem‑se a essa ordem. Essas regras em conjunto é que devem ser interpretadas e aplicadas como um todo para a concreção das normas constitucionais. […] Ressalvando‑se que as questões concretas podem suscitar a consideração de outros princípios no momento da aplicação da lei antitruste, pode‑se enumerar os mais relevantes à matéria, dentro do enfoque deste trabalho: livre‑iniciativa, livre concorrência, repressão ao abuso do poder econômico; e bem‑estar do consumidor” (NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Defesa da Concorrência e Globalização Econômica – o controle da concentração de empresas. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 232‑234).
[9] Conferir sobre o assunto: SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal: introdução às agências reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 35.
[10] “A abertura à concorrência não consistiu unicamente em um processo ‘liberalizador’ (eliminação de barreiras de entrada ao exercício da atividade). Pelo contrário, nestes setores, a privatização e a liberalização foi acompanhada de um novo modelo de regulação para a concorrência, pois dadas as características de monopólio natural, presente em alguma fase de sua atividade e as tendências colusivas de muitos desses setores, a privatização e teórica liberalização poderiam posteriormente desembocarem um monopólio privado, tão ineficiente ou mais que o serviço público monopolizado de titularidade estatal” (ORTIZ, Gaspar Ariño; GARCÍA‑MORATO, Lucía Lopez de Castro. Derecho de la competência en sectores regulados: fusiones y adquisiciones – control de empresas y poder político. Granada: Comares, 2001. p. 5‑6) (tradução livre).
[11] Marie‑Anne Frison‑Roche ressalta que “Quando a liberalização dos setores coincide com a criação de regulações, esta é a consequência da constatação de que não basta declarar a concorrência, é preciso construí‑la. Disso decorre uma regulação dita ‘assimétrica’, ou seja, que visa abertamente a enfraquecer o poder de mercado do operador histórico, frequentemente público, para tornar o setor atrativo a novos operadores. O acesso ao setor é então considerado como uma espécie de porta aberta, a regulação funcionando então temporariamente como o degrau de acesso à concorrência” (ROCHE, Marie‑Anne Frison. Os Novos Campos da Regulação. In: Revista de Direito Público da Economia, n. 10, p. 199, abr.‑jun. 2005).
[12] Defendendo a necessidade de mecanismos regulatórios próprios e independentes da lógica da concorrência em termos de busca da universalização de infraestruturas, Diogo Rosenthal Coutinho assevera que: “o estímulo à concorrência, ainda que bem‑sucedido, não é suficiente para garantir a universalização. É mais fácil imaginar que um regime concorrencial leve à rivalidade de firmas na utilização da infraestrutura já construída do que a uma rivalidade na expansão da rede (exceto se a expansão se justificar em razão de interesse comercial concreto na área a ser alcançada). Da mesma forma, não se verifica que a rivalidade incipiente entre firmas brasileiras prestadoras de serviço público chegue a um grau de acirramento tal que a oferta de serviços mais baratos para as classes pobres desponte como um elemento diferenciador para o consumidor consciente. Em outras palavras, a concorrência, altamente benéfica para o consumidor já incluído do mercado, não é capaz de, por si só, incluir cidadãos alijados do acesso às redes, nem tampouco atingiu um grau de sofisticação tal que a diferenciação de produtos se dê por meio da avaliação do nível de comprometimento social da empresa prestadora do serviço. Fato é que a concorrência e a universalização seguem lógicas muito distintas, que não podem ser substituídas e, em algumas situações, se contrapõem. Empresas privadas não investem em universalização a não ser (a) quando esta apresenta perspectivas concretas – e excepcionais de rentabilidade futura que justifique inversões ou (b) quando são obrigadas a isso pelas regras de regulação que tenham, entre seus escopos, objetivos redistributivos” (COUTINHO, Diogo Rosenthal. Privatização, regulação e o desafio da universalização do serviço público no Brasil. Regulação, direito e democracia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. p. 83‑84).
[13] A existência de monopólios naturais remonta a situações em que há significativas economias de escala e/ou de escopo em relação ao tamanho do mercado, calculado para um preço ao nível do custo médio mínimo (escala mínima eficiente). Tais condições tornam impeditiva a existência de mais uma rede, isto é, tornam sem sentido econômico sua duplicação. Os monopólios naturais associam-se ao setor de infraestrutura de um país, eis que permitem a circulação de bens elementares para a população e para a vida econômica. Sobre o assunto, conferir: PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Campus, 2005. p. 262 e ss.
[14] Em 2008, Antonio Delfim Netto defendeu, no Valor Econômico, que os terminais de uso misto dificultariam a regulação: “Essa observação parece importante no momento em que se discute uma mudança de legislação, que eventualmente autorizará a instalação de terminais estritamente privados (sem a saudável exigência de carga própria significativa), que poderão movimentar cargas de terceiros: os estranhos terminais privativos de ‘uso misto’. Quando há carga própria significativa, a razão para a carga de ‘terceiros’ é que ela reduz os custos operacionais pelos ganhos de dimensão. Tais terminais competiriam com terminais verdadeiramente de ‘uso público’, que são arrendados por licitação pública, por período bem definido e com a obrigação de devolver os ativos ao Estado uma vez findo o contrato.
A não exigência de carga própria em volume significativo possibilitaria ao autorizado, com um pequeno sofisma, exercer as funções de terminal público e operar contêineres de terceiros com evidente desrespeito à pré-condição de uma licitação com custos e obrigações de uma operação efetivamente pública. No longo prazo, suas consequências podem ser desastrosas para a regulação da atividade.
No caso de exportação de produtos agrícolas, nada impede que os pequenos produtores (que desejam livrar-se da pressão exercida pelas exportadoras que têm terminais de ‘carga própria’) organizem-se na forma de cooperativas (ou outros arranjos) e possam também operar em terminais de ‘carga própria’ significativa e, com investimentos adequados, manipular carga de terceiros para reduzir os seus custos. A mesma solução podem encontrar os pequenos exportadores de produtos minerais. Não há, portanto, a necessidade de terminais de ‘uso misto’, que podem pôr em risco a eficácia da agência reguladora.” (O PAC e os Portos – Delfim Neto, artigo publicado no jornal Valor Econômico. Portos&Mercados, 27 jun. 2008. Disponível em https://www.portosmercados.com.br/o-pac-e-os-portos-delfim-netoartigo-publicado-no-jornal-valor-economico/. Acesso em: 20 jan. 2020.
[15] Parecer da Comissão de Serviços de Infraestrutura [s.n.], 2020. Relator senador Jean Paul Prates. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8906757&ts=1605715577342&disposition=inline. Acesso em: 20 jan. 2020
[16] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública- MJSP. Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Ato de Concentração nº 08700.007101/2018-63. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?mYbVb954ULaAV-MRKzMwwbd5g_PuAKStTlNgP-jtcH5MdmPeznqYAOxKmGO9r4mCfJlTXxQMN01pTgFwPLudA_Ayco-hk7GWBTyyYphfkuuHYNKTU2LXupL9A5DnSciN. Acesso em: 20 jan. 2020.
[17] “O mercado deixado sem controle, também causa ineficiências, pois não se autorregula com justiça, e tende a concentrar renda, monopolizar e criar distorções sistêmicas na economia. Ao mesmo tempo, afastar totalmente o Estado da economia incorre no risco de dar condições a agentes políticos propositalmente eximirem o Estado de suas funções obrigatórias. O advento da recente crise econômica mundial comprovou esta tese. Neste sentido, os críticos do mercado dão importante contribuição, pregando a necessidade de melhores mecanismos de controle estatal com participação da sociedade civil de forma mais descentralizada” (DIAS, Ricardo Macedo; ALMEIDA, Sérgio Roberto de Porto. A participação estatal no porto de Santos como política para viabilizar a atividade portuária. REDIGE – SENAI, v. 2. n. 02, ago. 2011. p. 427)
[18] A propósito, é relevante mencionar que, no PLS 261/2018, em seu artigo 4º, colhe-se disciplina que enfatiza ainda mais a interface regulação e antitruste: “A política setorial, a construção, a operação, a exploração, a regulação e a fiscalização das ferrovias em território nacional devem seguir os seguintes princípios: I – proteção e respeito aos direitos dos usuários; II – preservação do meio ambiente; III – redução dos custos logísticos; IV – aumento da oferta de mobilidade e de logística; V – integração da infraestrutura ferroviária; VI – compatibilidade de padrões técnicos; VII – eficiência administrativa; VIII – distribuição de rotas de determinada malha ferroviária entre distintas operadoras ferroviárias, de modo a impedir a concentração de origens ou destinos; IX – defesa da concorrência; X – regulação equilibrada Parágrafo único. Além dos princípios relacionados no caput, aplicam-se ao transporte ferroviário associado à exploração da infraestrutura ferroviária em regime privado os princípios da livre concorrência, da liberdade de preços e da livre iniciativa de empreender”. E, no artigo 5º, constam as diretrizes a serem seguidas pelo transporte ferroviário: “I – promoção de desenvolvimento econômico e social por meio da ampliação da logística e da mobilidade ferroviárias; SF/20356.00352-17 21 II – expansão da malha ferroviária, modernização e atualização dos sistemas, e otimização da infraestrutura ferroviária; III – adoção e difusão das melhores práticas do setor ferroviário, garantia da qualidade dos serviços e da efetividade dos direitos dos usuários; IV – estímulo à modernização e ao aprimoramento da gestão da infraestrutura ferroviária, à valorização e à qualificação da mão de obra ferroviária e à eficiência das atividades prestadas; V – promoção da segurança do trânsito ferroviário em áreas urbanas e rurais; VI – estímulo ao investimento em infraestrutura, integração de malhas ferroviárias e eficiência dos serviços; VII – estímulo à ampliação do mercado ferroviário na matriz de transporte de cargas e de passageiros; VIII – estímulo à concorrência intermodal e intramodal como inibidor de preços abusivos ou práticas não competitivas; IX – estímulo à autorregulação fiscalizada, regulada e supervisionada pelo poder público; X – incentivo ao uso racional do espaço urbano, à mobilidade eficiente e à qualidade de vida nas cidades”.