Sistema de precedentes no direito brasileiro

Se os textos das leis geram equívocos e as normas são vagas então é no precedente que a ordem jurídica ganha unidade. ____ Por Fernando Pessoa de Aquino Filho Advogado —– (Bonijuris #669 Abr/Maio 2021)

Fernando Pessoa de Aquino Filho ADVOGADO

O fenômeno jurídico sofre de dupla indeterminação: os textos das leis podem gerar equívocos e as normas são vagas[1]. Diante desse problema, a jurisdição se despiu de uma visão cognitivista na interpretação, na qual imaginava-se o juiz como oracle of the law ou como étre inanimé, e passou, de fato, a interpretar textos de maneira a adscrever sentido a eles, convertendo-os em normas. Esse fenômeno demonstra a transformação de um elemento significante (texto) em um verdadeiro significado (norma)[2].

                 Assim, se nas teorias clássicas da jurisdição o juiz declaravaa lei (magistrado esclave de la loi) ou, no máximo, criava uma norma individual baseada na norma geral (magistrado ministre d’équité)[3], hoje ele reconstrói a norma jurídica baseando-se na interpretação como uma atividade “adscritiva” de sentido ao texto legal[4].

                 Em resumo, pode-se afirmar que a doutrina finalmente entendeu que não se interpretam normas, mas sim textos dotados de autoridade jurídica[5]. Constatando-se esse real papel da jurisdição diante da nova teoria das normas compreende-se o novo significado de interpretação judicial.

                 Portanto, se a interpretação que advém da jurisdição é uma atividade adscritiva de sentido que reconstrói a norma jurídica, parece ser mais importante, por exemplo, em um caso de controle abstrato de constitucionalidade apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, construir a ratio decidendi vencedora no colegiado do que apenas expor um “placar de julgamento” pela (in)constitucionalidade do texto – no qual os votos podem ter a mesma conclusão, mas com razões completamente distintas[6].

                 Ademais, se isso tudo é verdade, nota-se que o sistema de precedentes obrigatório está longe de ser mera técnica de gestão de processos que visa à “diminuição da sobrecarga de processos no Judiciário”[7]. Em verdade, a regra do stare decisis constitui a referência da segurança jurídica em um direito caracterizado pela dupla indeterminação[8], fazendo com que os arts. 926 e 927 do cpc sejam apenas elementos para torná-la mais visível.

                 Em verdade, a substancial justificativa para tratar casos idênticos da mesma forma está no deslocamento de uma perspectiva cognitivista da interpretação judicial para uma perspectiva adscritivista da interpretação.

                 É exatamente nesse sentido que Marcelo Neves afirma haver “dupla contingência” entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, ao defender também a importância dos precedentes para a diminuição do que chama de “efeito surpresa” das decisões[9]. Humberto Ávila, no mesmo sentido, aduz que os precedentes judiciais possuem uma força presumida[10].

                 Pode-se afirmar, então, que os precedentes são instrumentos para a criação de normas mediante o exercício da jurisdição[11]. Tais normas (razões) – extraídas dos precedentes – são, inequivocamente, fontes do direito[12].

                 Quanto às razões constantes das decisões judiciais das cortes supremas (precedentes), acosto-me à ideia de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Arenhart e Daniel Mitidiero, quando afirmam que

o significado das fontes – ao menos para que as pessoas possam se autodeterminar e serem tratadas isonomicamente diante da administração da Justiça Civil – deve ser apreendido de acordo com as razões que são sustentadas pelas cortes supremas para a solução de casos concretos.[13]

                 Trocando em miúdos: esses autores (e eu me inclino a concordar com a premissa) defendem a ideia de que os precedentes judiciais – por serem normas jurídicas que resultam da interpretação –, ao mesmo tempo que são fontes do direito, também têm o condão de atribuir significado às demais fontes utilizadas para fundamentar argumentações jurídicas. Afinal, é no âmbito da jurisdição que se transforma texto (significante) em norma (significado).

                 Pois bem. Falar sobre isso nos remete, naturalmente, à segurança jurídica.

                 Relevante parte da doutrina entende que a segurança jurídica é a própria meta do direito. O economista austríaco Friedrich A. Von Hayek advoga que o conhecimento do direito (laws of the state), assim como o conhecimento das leis da natureza (laws of nature), faz o indivíduo planejar sua atuação social, constituindo condição essencial para a própria liberdade e ainda para alcançar seus objetivos de vida[14].

                 Além de Hayek, outros vencedores do Prêmio Nobel da Economia, como Douglass North e Ronald Coase, defendem que o papel-chave das instituições, em um estado de direito, deve ser o de reduzir incertezas.

                 Com instituições sólidas e previsíveis, abre-se caminho para a construção de uma sociedade que realmente cumpra as “regras do jogo”, uma vez que se converte naturalmente em um ambiente social propício para à feitura de negócios, cumprimento de contratos e cooperação[15]. Dentre tais instituições, essenciais para o desenvolvimento socioeconômico racional, está o sistema de justiça, tanto em sua faceta criadora das leis (função legislativa) quanto na aplicação delas (jurisdição estatal).

                 De fato, tudo no mundo só funciona bem na base da confiança – um dos fundamentos básicos da vida em sociedade. Apenas quando essa virtude é praticada casamentos duram, amizades funcionam, economias crescem e nações progridem. Para avançar, é imprescindível conhecer o terreno em que se está pisando, pois ninguém se sente tranquilo para ir adiante sem ter um razoável grau de segurança.

                 No direito, entretanto, não se pode esquecer de que outra função essencial é a de promover a adequação social. Como é cediço, a sociedade avança e se transforma constantemente, cabendo ao direito (tentar) acompanhá-la, sob pena de novas realidades surgidas de fenômenos jurídicos não estarem tuteladas.

                 Conclui-se que, apesar de a segurança jurídica ser, indiscutivelmente, corolário do direito, não pode ser buscada como algo imutável. Se assim fosse, estaríamos criando uma segurança “engessada”, que nunca se adaptaria às transformações culturais, aos avanços tecnológicos etc.

                 Por isso, embora a segurança jurídica, em suas facetas de cognoscibilidade e de previsibilidade, seja indispensável para que os jurisdicionados tenham a mínima “capacidade de planejamento” de suas vidas, há outro braço da segurança jurídica do qual não se pode olvidar: a estabilidade.

                 É através da estabilidade que o sistema jurídico respeita a sua necessidade da adequação social. Não há, pois, recalcitrância ao acompanhamento das mudanças sociais, mas sim rechaço às mudanças desprovidas de critério. A perspectiva da segurança jurídica como estabilidade requer certo grau de continuidade e preservação da consistência, convivendo com níveis de flexibilidade[16]. Em outras palavras: um sistema estável é aquele no qual as mudanças causam poucos danos à sociedade[17].

                 O cenário até aqui delineado é elementar para que se entenda a importância de um sistema de precedentes. Ao mesmo tempo que o stare decisis densifica a segurança jurídica e promove liberdade e igualdade em uma ordem jurídica que se serve de interpretações lógico-argumentativas da interpretação (adscritiva de sentidos a textos), também goza de instrumentos típicos da busca por adequação às frenéticas mudanças sociais: a distinção (distinguishing) e asuperação (overruling).

                 O primeiro instrumento serve justamente para mostrar que não há analogia possível entre os casos, de modo que o caso em apreço está fora do âmbito do precedente e, por isso, aquela ratio decidendi universalizada não deve ser aplicada. Já o segundo é a própria superação da norma do precedente, a qual deve ocorrer apenas no âmbito dos órgãos encarregados pela sua formulação e mediante um complexo ônus argumentativo, que envolve a demonstração de desgaste do precedente no que se refere à sua congruência social e adequação ao sistema jurídico[18].

                 Isso não faz do sistema de precedentes uma panaceia. O dilema entre segurança jurídica e adequação social é certamente o tema que gera os mais profundos trabalhos no âmbito da teoria do direito, valendo citar, no Brasil, os de Humberto Ávila[19] e de Marcelo Neves[20]. A teoria dos precedentes, portanto, passa longe de esgotar o tema, mas, irrefutavelmente, ajuda-nos a conviver com um direito seguro e racional, que não é petrificado.

                 O Código de Processo Civil de 2015 não traz à tona um sistema de precedentes, isoladamente, apenas em seus arts. 926 e 927. Há, sem dúvidas, uma estrutura de respeito às “normas” oriundas de decisões vinculantes.

                 Depreende-se do cpc, por exemplo, que o precedente formado tem previsão legal de obrigatoriedade (art. 927); torna-se estável, gerando o dever de coerência, estabilidade e integridade para os tribunais (art. 926); embasa antecipações de tutela com base na evidência do direito (art. 311, ii); resulta na improcedência liminar de pedidos que vão de encontro à sua “norma” (art. 332); impõe ao magistrado o dever de enfrentá-lo por meio de uma decisão fundamentada analítica e extrinsecamente (art. 489, § 1º, v e vi); amplia os poderes do relator para barrar recursos que o vilipendie (art. 932, iv e v); e traz uma série de efeitos na admissibilidade de recursos excepcionais (art. 1.030, i, “a”).

                 O Código de Processo Civil, de fato, homenageia um sistema no qual impera a máxima do treat like cases alike. A despeito disso, pode-se afirmar que a justificativa para um stare decisis não vem do direito processual civil. Há uma justificativa maior.

                 Se o direito não é apenas revelado pela decisão judicial e se o texto legal não é portador de um único sentido intrínseco apenas declarado pelo Poder Judiciário, mas sim é de algum modo (re)construído pelas decisões judiciais, então a fidelidade ao precedente é o meio pelo qual a ordem jurídica ganha unidade, tornando-se um ambiente verdadeiramente seguro, livre e isonômico[21].

                 Em um direito em que texto é diferente de norma, a ressonância do precedente é vinculante porque encarna a própria interpretação da Constituição (stf) ou da legislação federal (stj). Nesse sentido, aduz o professor Daniel Mitidiero:

Se a Constituição é a interpretação da Constituição e a lei federal é a interpretação da lei federal, então é evidente que qualquer dissociação entre norma e interpretação – dentro da administração da Justiça Civil – só pode ser vista como um subterfúgio para escapar da eficácia vinculante da própria Constituição ou da lei federal.[22]

                 A evolução da teoria da interpretação culminou na missão das cortes de vértice de darem a última palavra a respeito do significado dos textos (significantes) da Constituição e da legislação federal. É por isso que as decisões das cortes supremas importam como direito vigente e constituem a garantia de unidade do direito[23].

                 Depreende-se diante disso tudo que falar em papel da jurisdição, afastando-o de uma visão clássica e retrógrada, é tarefa muito mais próxima da teoria do direito (ou da teoria das normas) do que do direito processual civil.

FICHA TÉCNICA // RevistaBonijuris Título original: Sistema de precedentes no direito brasileiro: um assunto de teoria da norma jurídica (e não de processo civil). Title: System of precedents in Brazilian law: a subject of legal norm theory (and not of civil procedure). Autor: Fernando Pessoa de Aquino Filho. Mestrando em Direito pelo idp (df). Pós-graduando em Processo Civil pelo Mackenzie (sp). Graduado pela ufpb. Advogado. Resumo: Os precedentes são instrumentos para a criação de normas mediante o exercício da jurisdição. Tais normas (razões) são, inequivocamente, fontes do direito. Ao mesmo tempo também têm o condão de atribuir significado às demais fontes utilizadas para fundamentar argumentações jurídicas. Afinal, é no âmbito da jurisdição que se transforma texto (significante) em norma (significado). Em um direito no qual texto é diferente de norma, a ressonância do precedente é vinculante porque encarna a própria interpretação da Constituição (stf) ou da legislação federal (stj). Abstract: The precedents are instruments for the creation of standards through the exercise of jurisdiction. Such rules (reasons) are unmistakably sources of law. At the same time, they are also able to attribute meaning to the other sources used to support legal arguments. After all, it is within the jurisdiction that text (significant) is transformed into a norm (meaning). In a law in which text is different from the norm, the resonance of the precedent is binding because it embodies the very interpretation of the Constitution (Supreme Federal Court) or federal legislation (Superior Court of Justice). Data de recebimento: 26.11.2020. Data de aprovação: 08.02.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 2 – #669 – abr./maio 2021, págs …, Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, issn 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

REFERÊNCIAS

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NOTAS

[1] GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011. p. 39 e ss.

[2] MACEDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3. ed. – Salvador: Juspodivm, 2019, p. 84.

[3] ROSS, Alf. Theorie der Rechtsquellen. Darmstadt: Aalen. 1989, p. 39.

[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 53.

[5] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo de juízes.  6. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 37-38.

[6] AQUINO FILHO, Fernando Pessoa de. Deliberação do STF em ações de controle concentrado de constitucionalidade. Consultor Jurídico. 29 set. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-25/aquino-filho-deliberacao-stf-acoes-controle-concentrado-constitucionalidade. Acesso em: 29 dez. 2020.

[7] VIANA, Aurélio; NUNES, Dierle. Precedentes – A mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 201.

[8] MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 88

[9] NEVES, Marcelo. Princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, p. 170; 213.

[10] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.

[11] CROSS, Rupert; HARRIS, J.W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, p. 72; MUÑOS, Martin Orozco. La creación judicial del derecho y el precedente vinculante, 2011, p. 28.

[12] COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 29.

[13] MARINONI, Luiz Guilherne; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: teoria do processo civil. 5. ed.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, V. 1, p. 40.

[14] HAYEK, Friedrich A. Von. The constitution of liberty. Chicago: Chicago University Press. 1960, p.142-153. No mesmo sentido: NÓBREGA, José Flóscolo, Introdução ao direito, 8. ed. João Pessoa: Linha d’água, 2007, p. 101-102, aduzindo que: “o direito é técnica da segurança, o que não significa que não tenha por finalidade a justiça”. Ainda no mesmo sentido: TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. São Paulo: RT, 2011, p. 32-33; ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 89.

[15] NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 97; COASE, Ronald. H. O problema do custo social. In: SALAMA, Bruno Meyerhof (org.). Direito e economia: textos escolhidos. Trad. de Francisco Kummel F. Alves e Renato Vieira Caovilha. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 81.

[16] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: Juspodivm, 2013.

[17] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 124.

[18] EISENBERG, Melvin. The Nature of the Common Law. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 104-105.

[19] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[20] NEVES, Marcelo. Princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.

[21] BENDITT, Theodore. The Rule of Precedente, Precedent in Law. Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 94.

[22] MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 101.

[23] MITIDIERO. Op. cit., p. 137.

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