Tecnologia e problemática dos direitos fundamentais

Violação á privacidade é um dos riscos trazidos pela tecnologia ainda que sua finalidade seja melhorar a produção. -- Por Bruna Isabelle Simioni Silva e Tatiana Lazzaretti Zempulski -- (Bonijuris #674 Fev/Mar 2022)

Bruna Isabelle Simioni Silva PROFESSORA DE DIREITO, DOUTORANDA NA UNIBRASIL

Tatiana Lazzaretti Zempulski PROFESSORA DE DIREITO, MESTRA PELA UNICURITIBA

AINDA QUE A INDÚSTRIA 4.0 TENHA A FINALIDADE DE MELHORAR A QUALIDADE DE PRODUTOS E SERVIÇOS, HÁ RISCOS EM JOGO. E A VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE É UM DELES

As modificações ocorridas no final da Idade Média e o movimento iluminista do século 18 são considerados marcos para o entendimento de que dos direitos naturais derivam os direitos fundamentais. Na esteira das declarações americana e francesa, foram concebidas as fundações históricas e filosóficas da ideia moderna de direitos humanos1.

A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, sinalizou a “transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais”2.

Em razão de os preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade terem sido levantados pela revolução francesa e considerados como direitos humanos universais – previstos na Declaração dos Direitos do Homem, em 1789 – foram eles reconhecidos como direitos naturais, inalienáveis, imprescritíveis e invioláveis para todos os homens, sem exceção3.

As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” possuem íntima relação, muitas vezes utilizadas como sinônimos. Entretanto, são diferentes. Ao tratamos de direitos do homem, identificamos como sendo “direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos […]; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente”4.

Assim, tem-se que a função primordial dos direitos fundamentais “é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado”5, podendo ser vistos sob uma dupla perspectiva: 1) em um plano objetivo, são normas de competência negativa em face aos poderes públicos, porque proíbem suas arbitrariedades na esfera jurídica individual; 2) e em um plano subjetivo, a exigência e a possibilidade de exercer positivamente direitos fundamentais e evitar agressões por meio de omissões dos poderes públicos6.

Os direitos fundamentais passaram por diversas modificações quanto à sua eficácia, titularidade e efetividade, o que pode ser identificado pela sua classificação em gerações ou dimensões.

A primeira geração é oriunda da doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos 17 e 18, considerados direitos de oposição ao Estado, os direitos à liberdade, à igualdade (perante a lei), à vida e à propriedade7.

A segunda geração destaca os direitos sociais, econômicos e culturais, tendo em vista os problemas econômicos, sociais e o impacto da industrialização, representados pelos direitos à saúde, à educação, ao trabalho e à assistência social.

Os direitos de terceira geração são representados pelos direitos de fraternidade e solidariedade8.

Há quem defenda a existência dos direitos fundamentais de quarta geração como sendo a proteção aos direitos ligados à pesquisa genética, sendo uma forma de proteção à globalização desenfreada9. Já os de quinta geração estariam relacionados à mudança paradigmática em direção a uma sociedade informacional10, caracterizada “pela expansão do domínio de sistemas técnicos e pela transformação do espaço em ciberespaço, trazendo expectativas, ilusões e poucas certezas”11. Entretanto, “em que pese os direitos fundamentais serem classificados em gerações, podem e devem ser analisados de forma conjunta, de forma a proporcionar uma nova forma de conceber um dado direito”12.

Com o advento da revolução industrial, a produção em grande escala e a concentração do trabalho nas fábricas consolidaram o regime capitalista, com suas misérias e grandezas13.

Ao final da primeira guerra mundial, surgiu a inclusão de garantias fundamentais e interesses sociais nas constituições, fenômeno chamado de constitucionalismo social14.

A Constituição do México, de 1917, foi a primeira carta política que conferiu direitos políticos aos trabalhadores e às liberdades pessoais o status de direitos fundamentais15. Seguindo os mesmos passos, tem-se a constituição de Weimar, de 1919, que aperfeiçoou “as linhas-mestras já traçadas na primeira, no que se refere ao Estado da democracia social”16.

No caso do Brasil, entende-se que o país chega à pós-modernidade “sem ter conseguido ser nem liberal nem moderno”17, tendo em vista que o Estado está sempre presente, sendo necessárias “as bênçãos do poder estatal” para a implantação de projetos empresariais e sociais18.

No estado de bem-estar social, iniciado na metade do século 20, surgiram conceitos “como os de função social da propriedade e da empresa, assim como se consolidam os chamados direitos sociais”19.

Atualmente, a discussão quanto aos direitos fundamentais chegou ao patamar do direito à proteção de dados pessoais, o que ocorre com o advento da tecnologia, que, na virada do século 20 para o 21, transformou o acesso ao conhecimento em um simples toque de uma tela, ou simplesmente a busca por informações na internet.

O uso das redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter, Linkedin, YouTube, Telegram e WhatsApp são claros exemplos de espaços virtuais ocupados pelos indivíduos, de forma ilimitada e voluntária, que tendem a expor, sem qualquer restrição, a vida privada.

Em uma sociedade informacional, a liberdade “passa a ser vinculada ao fato de se estar conectado”20. Sabe-se, contudo, que é sobre essa mesma liberdade que surgem riscos e que são desafiados “os dois fundamentos básicos da internet – liberdade e privacidade”21.

Como paradoxo, tem-se a busca pela limitação de algo que é ilimitado22, já que, na atual era, o comportamento espontâneo, realizado em “um sistema altamente sofisticado e complexo, que deseja obter cada vez mais e mais informações a respeito do maior número possível de pessoas”23, com suporte de armazenamento em maior escala e acessíveis a qualquer momento, por meio das nuvens, permitiu o acesso ad infinitum24.

Esse resultado é perceptível com simples pesquisas em sites de buscas que apresentem os melhores resultados e os elenquem em ordem de importância, indicando, ainda, as perguntas realizadas pelos usuários. Nas redes sociais, são arroladas as publicações que possuem preferências, o indicativo de possíveis amigos por meio do vínculo de relacionamento dos participantes, preferências por determinados produtos, lugares e atividades25. Em sites de compras, a preferência por produtos ou serviços é detalhada.

Ademais, várias informações de uma pessoa estão relacionadas, desde o conhecimento dos dados pessoais até a busca de dados que seriam considerados sigilosos, com um acervo incrível de informações que deveriam ser protegidas, tendo o claro objetivo de armazenar informações, realizando uma espécie de catalogação de perfis26, de modo a “assegurar e identificar a comunicação virtual para atendimento de finalidades econômicas”27.

Em verdade, a era não é de informação, mas de relativização dos direitos fundamentais em prol da tecnologia, já que “ao invés de utilizar a tecnologia como ferramenta, acaba sendo possuída por ela”28.

Jânia Maria Lopez Saldanha, Márcio Morais Brum e Rafaela da Cruz Mello concordam:

Veja-se, por exemplo, a ditadura do whatsapp e a fragmentação que supõe para um verdadeiro trabalho intelectual ou o déficit nas relações pessoais que, em muitos casos, têm ocasionado o mundo virtual. Por outro lado, a informação – mesmo fake – abunda, mas sem capacidade de ser processada. Por fim, a mente acomodada, vai recorrendo cada vez mais ao imediatismo tecnológico, atrofiando o raciocínio.29

A problemática surge quando a maior parte dos usuários não possui noção de que os rastros digitais são transformados em dados, tendo em vista que a obtenção de dados surge de forma silenciosa através dos aplicativos disponíveis para os celulares, que permitem acesso irrestrito a fotos, à agenda telefônica e a outras autorizações, para que possam ser instalados, o que implica abuso de privacidade30.

Certo é que a quarta revolução industrial ou indústria 4.0 tem a finalidade de melhorar a qualidade dos produtos e serviços que são oferecidos às pessoas. Mas também pode ser identificada a existência de riscos capazes de causar danos aos direitos fundamentais, no que se refere aos direitos da personalidade, em especial ao direito à privacidade31.

Com a alta capacidade de armazenamento de informações, é possível encontrar alguns cenários: o primeiro, com a ampliação do conhecimento das pessoas mediante a coleta de dados, o que pode gerar o aumento da possibilidade de invasão de privacidade; o segundo, a possibilidade de controle das pessoas por meio da inteligência artificial, podendo, com base nos dados coletados, ter o direcionamento de informações, verdadeiras ou falsas, a fim de manipular o comportamento delas, seja em relação ao consumo, seja por preferências culturais, políticas ou religiosas32.

De acordo com Eduardo Tomasevicius Filho:

Importante seria que as legislações, as constituições e os códigos civis afirmassem e reafirmassem a proibição do uso de dados pessoais identificáveis fornecidos voluntariamente pelas pessoas pelo simples fato de navegarem na Internet. Assim como não faz sentido algum a situação em que uma pessoa, com um drone ao qual se tenha acoplada uma câmera, telepilote-o à janela de uma pessoa e, por meio de um alto-falante acoplado a esse drone, se pergunte se a pessoa aceita ou não ter a sua privacidade e intimidade devassada, não deveria fazer sentido, do mesmo modo, indagar se a pessoa aceita ou não ter a vida devassada e controlada, caso aceite que se faça a coleta de dados a seu respeito pela navegação na Internet.33

De modo geral, os aplicativos públicos ou privados “capturam os dados daqueles que utilizam seus serviços, armazenando-os”34 com a possibilidade de comercializá-los “sem o conhecimento e o consentimento do titular”35, com a preocupação de que o uso é “para a finalidade específica para a qual foram coletados ou se estão sendo utilizados para fins diversos (inclusive para controle e vigilância)”36, bem como qual a proteção e segurança contra vazamentos dos dados sensíveis.

É imperioso destacar que “os direitos fundamentais são, acima de tudo, consequências de reivindicações concretas, geradas por situações de injustiça ou agressão a bens fundamentais do ser humano”37, possuindo a função de prestação social referente aos direitos sociais, culturais e econômicos, assim como de proteção perante terceiros, relativos à proteção de dados eletrônicos, inviolabilidade de domicílio e direito de associação. Nas palavras de Canotilho38, certo é que “o ser humano não pode ser reduzido à condição de objeto”39.

FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris

Título original: Evolução tecnológica: a problemática relativização dos direitos fundamentais em prol da tecnologia. Title: Technological evolution: the problematic relativization of fundamental rights in favor of technology. Autoras: Bruna Isabelle Simioni Silva. Doutoranda e mestra em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL – (Bolsista PROSUP/CAPES). Graduada em Direito pela Faculdades Integradas do Brasil – UNIBRASIL. Professora no Centro Universitário Internacional – UNINTER. Responsável pelo grupo de estudos Direitos da Mulher, do Centro Universitário Internacional – UNINTER. Professora da pós-graduação do Curso Jurídico e preparatório de concurso público. Professora convidada da Pós-Graduação da Escola da Magistratura Estadual de Santa Catariana – ESMESC. Colunista do Sala de Aula Criminal. Advogada. E-mail: simionibruna@hotmail.com. Tatiana Lazzaretti Zempulski. Mestra em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, com especialização em Direito do Trabalho pela PUC/PR. Curso de Aperfeiçoamento em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Universidade Sapienza – Roma. Advogada. Especialista em Direito do Trabalho. Professora convidada do Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho da ABDCONST. Professora adjunta da Organização Paranaense de Ensino Técnico (OPET) e no curso de Bacharelado em Direito. Professora da Graduação em Direito do Centro Universitário Internacional (UNINTER). E-mail: tatizemp@hotmail.com. Resumo: A função primordial dos direitos fundamentais é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante o Estado. A questão chegou ao patamar do direito à proteção de dados pessoais com o advento da tecnologia que transformou o acesso ao conhecimento em um simples toque de tela ou busca por informações na internet. A maior parte dos usuários não possui noção de que os rastros digitais são transformados em dados, de forma silenciosa, através dos aplicativos disponíveis para os celulares, que permitem acesso irrestrito a fotos, agenda telefônica e a outras autorizações, o que implica abuso de privacidade e redução do ser humano à condição de objeto. Abstract: The primary function of fundamental rights is the defense of the human person and his dignity before the State. The issue reached the level of the right to protection of personal data with the advent of technology that transformed access to knowledge into a simple touch of the screen or searching for information on the internet. Most users are not aware that digital tracks are silently transformed into data through the applications available for cell phones, which allow unrestricted access to photos, phonebook and other authorizations, which implies an abuse of privacy and reduction of the human being to the condition of an object. Data de recebimento: 15.07.2021. Data de aprovação: 01.10.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 6 – #673 – dez21/jan22, págs … . Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

BRUNA ISABELLE SIMIONI SILVA: Tecnologia e a problemática dos direitos fundamentais/doutrina, 1

Direitos fundamentais, 1

TATIANA LAZZARETTI ZEMPULSKI: Tecnologia e a problemática dos direitos fundamentais/doutrina, 1

Tecnologia e a problemática dos direitos fundamentais/doutrina, 1

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